sábado, 31 de março de 2007

O enterro do Andy

Você nasce, diz que ama, dói e morre. Há quem me diga pessimista, há quem brade ‘realista’!, Mas eu? Eu cansei de me dizer, eu me arrasto pela vida, sorvendo o tédio-de-cada-dia pelas plantas dos pés. Já me disseram que o maior minuto de sua vida é o que antecede a morte. É aquele retrospecto: infância feliz jogando bombinhas na casa de vizinhos, brincando de médico com a irmãzinha do amigo incestuoso, correndo com mais alguns menininhos atrás de uma bola suja. Aí vêm a adolescência, primeiras competições, rebeldias megalomaníacas como fumar às escondidas na escada de incêndio, shows de rock, e a paixãozinha boba. Espinhas na cara, punheta e revistas eróticas. Juventude madura, politização, passeatas, namoros sérios, orgias, bebedeiras, drogas, um pouco de trabalho, um tanto de faculdade, e pronto, vida adulta. Casa, carro, filhos, horários, happy-hour, amante, cachorro, viagens de férias, velhice, visita de filhos, morte.

Nesse grande e infinito bolo, a calda é despejada em generosas camadas gosmentas de uma moralidade guilhotinesca. Primeiro arrancam-lhe o pau, símbolo da corruptela de nosso monturo de carne de terceira pecadora, em seguida um manual de instrução, que, longe do calor de suas concepções inocentemente lidas, programa os seus bagos para arquear a sua alma em uma vozinha castrada. Nome disso? Humildade. A descrição do inferno é hedionda e enfadonha. Só não descrevem o homem. Se a empreitada fosse finalmente bem feita, ao receber os internos, as hóstias infernais sentiriam a ameaça de seres não filhos do pecado, filhos de andy warhol com veias heróicas pulsando em riste. Uma anarquia desconstrutivista dos parâmetros curriculares da instituição infernal dantesca. Mas dante pode estar errado, como sempre estamos.

Esse minuto funesto me persegue a cada segundo. A anormalidade de minha vida consistiu no meu incômodo cotidiano de experimentar o caminho natural das coisas. O exército ruma à Normandia, e você assiste de camarote. Não dá um tiro. Fica em sua poltrona comendo biscoitos de gordura hidrogenada e bebendo coca-cola. Mas o problema não é espectar, é saber que é expectador. É ver a teia a ser tecida pela aranha cabeluda e sorridente, que de quando em quando, libera um veneno de alívio, enquanto você abre mais uma latinha e rabisca um panfleto anarco-proletário-salvacionista.

A vida de um sujeito pode chegar a um tal ponto que a idéia de morte, longe de ser alívio, é tédio. Sua libido escorrega montanha abaixo, seu corpo mal pede comida, e quando se arrasta, é até as microondas da televisão de cozinha, onde os filmes hollywoodianos são mais baratos e comerciais, mais tragáveis. Seus telefones param de tocar, seu carro enferruja e seus pais vão à Europa e te mandam um postal de ano em ano com rabiscos ininteligíveis de quem mal escolheu a foto e pediu ao vendedor que riscasse quaisquer recomendações vazias.

Da janela penso que essa é a vanguarda da geração que bate à porta. Nem o prozac salva. Somos um câncer com um ego expandido, que a tudo avalia e encolhe, na incompatibilidade de te trazer algum prazer. A dor sempre esteve aí, mas nunca foi tão inteligente. Hoje ela conta com bilhões de neurônios que mal são apagados com álcool, sexo ou drogas. É uma parte da fisiologia, um novo apêndice que cresce metros e metros por entre a massa cinzenta, até absorver todo organismo. Olá, seja bem vindo, essa é a minha gang, meus comparsas, meus filhinhos do caos, meus pós-apocalípticos. O novo mundo já foi descoberto, o estado já é laico, a Alemanha já foi vencida e a guerra fria acabou. O que sobrou pra nós? A Paris Hilton.

- soldado John, como foi libertar um país das mãos de um ditador sanguinário?
- sei lá, me deu vontade de dar uns tiros e vim pra cá me divertir. Foi bem legal, consegui até por dois desses cara-queimadas para se comerem aos berros de alaaaaaaaaaaaaaaah!

Na penumbra de letrinhas pretas, borro a paisagem de uma geração que nem se reconhece. Geração? Eu sou um. Você é outro. Os universos entre nós nunca estiveram tão distantes. A cova nunca foi tão profunda, e o caixão já apodreceu. Todos de olhos vidrados e esbugalhados na tela brilhante! Avante! Ainda temos que descobrir o mistério que levou a Britney Spears a se separar do Justin! Como viveremos sem isso?

Uma carreira, duas carreiras e um vislumbre de lucidez, uma vontade de me juntar aos vietnamitas e enfiar balas em cabeções americanos com cara de budweiser. Vontade de uma causa, de um livro vermelho, de uma cartilha de guerrilha, de um movimento pacifista neo-hippie, vontades voláteis. Mais uma carreira. Shhhhhhhhhhhh. Vontades voltam e somem com as trilhas mágicas do pó da cinderela. O golden gate se abre e se fecha em intervalos suficientes para que você chegue a alguns milímetros de atravessá-lo, mas nunca consegue, nunca. A luz só impressiona. É intangível em sua imundície.

Meus olhos já secaram e andam rijos. Não existe motivo de choro. Não existe a dor melancólica dos poetas, o coração partido e a paixão idealizada... Existe apenas essa dor seca que contorce os seus intestinos e revira seus bagos, e só. Ela é seca, ela não chora. Ela pede leite condensado e um pouco mais de musicas do último segundo e de imagens re-imagens pré-imagens. Nada se inventa. Nem se cria. Transforma-se? Mentira. “Acredite se quiser”.

A mudança é um sonho sórdido, pois se ampara na idéia de que alguma coisa melhora. Impossível. Se uma coisa melhora, ela passa ontologicamente a adquirir o status de pior. E você quer mais e mais. E mais de nada. Porque nada vai saciar a sede. Inconformado, rio do pote seco. Uma risada maligna e dolorosa, de quem não aceitou a vida, mas não quer mais lutar por ela – e nem quer o trabalho de desistir. Só o vazio, um pianinho ao fundo e um copo de rum, já que o whisky anda caro demais.

Aos beliscões tentam me reanimar ‘vamos lá, vai ser bom’. Bom? Nunca é bom. É ruim porque é vazio, maquiado, e acaba. E o sabor do batom se desfaz à primeira olhada no espelho. Não sei se preciso disso. Não sei se não preciso. É um momento vivo onde existe a constatação de que estamos completamente mortos e ressequidos, trocando farpas humildes em mesas de bares mexicanos.

Vamos falar de amor. Pernas abertas em luxúria, cacetes armados, sussuros indecentes e gozos. E ai? O que existe depois disso? Passagem pra eternidade? Não. Pro inferno. O apêndice te cutuca pra lembrar que acabou e esvaziou-se. Secou, morreu. Até a próxima. Ereção. Ejaculação. E a próxima e a próxima. Um dia seu pau não sobe. Tome remédios e continue assim, vamos longe!

A fé é uma experiência fantástica. Ela irrompe das dialéticas de beneces e perdão e fulmina o peito com a paz. A paz de ver o tumor e sorrir. Já vi um velho pastor à beira da cama sorrindo ‘vou encontrar meu criador’. Mesmo que ele não o tenha encontrado, ele viveu. Alienação? Não. Vida. Não vida é respirar o ar tuberculoso da cidade que te entope as entranhas de um lodo preto que não se lava.

No turbilhão de blábláblás que já fui obrigado em fusões com grandes carteiras de cedro e ouvidos encerados com cotonetes johnsons a tolerar, pequenas estrelas ainda me intrigam. Primeiramente vistas em idade infantil, donde muitas cintilam até hoje. Ainda as conto nos dedos, mas seus brilhos poderiam preencher a eternidade do espaço. Eles encontraram, eu não. Não consigo compreender o brilho pela lógica, mas é precisamente a compreensão lógica que me cega da fulminação mística. Mas como conseguir uma fulminação mística? Estar aberto. Como estar aberto? Foda-se. Sou lógico. Morrerei como um Dedalus em súplicas no leito de sua cama fria ainda adolescente espreitado por demônios rabudos e dançantes em rodas pagãs por entre os meus miolos enervados.

Deus salve a Latrina das américas.
__________
Mateus Souza (revisado)

sexta-feira, 30 de março de 2007

Fases

Descobri, aprendi

Descobri que sou uma ponte com caminhos próprios
Aprendi que posso escolher ser feliz ou não
Descobri que certas dores são inevitáveis,
Aprendi que chorar alivia, mas não muda a situação
Descobri que meus maiores bens são os sentimentos que as pessoas tem por mim
Aprendi a cativar e que ser rica ou pobre não é questão de grana
Descobri que a timidez me afasta das pessoas
Aprendi que o sorriso é a melhor forma de estar perto delas
Descobri que perder pode não ser ruim
Aprendi que mesmo que eu não entenda na hora o melhor ainda está por vir
Descobri que deus está sempre comigo
Aprendi que ele tem vários nomes, um deles é a voz da consciência
Descobri que é preciso também dizer não
Aprendi que tenho que me salvar de mim mesma
Descobri que certas lembranças são tão vazias quanto um tecido morto em pele saudável
Aprendi a cortar o mal do passado seguindo em frente
Descobri que posso não estar feliz o dia todo
Aprendi que posso ser feliz antes que o dia termine
Descobri que me anular é trair a mim mesma
Aprendi a ser autentica e leal a isso
Descobri que a mentia e a omissão são armas que ferem com a mesma intensidade
Aprendi que não devo usa-las
Descobri que não devo dormir com vontade de fazer as pazes
Aprendi a não guardar mágoa
Descobri que estar perdida não é estar sozinha
Aprendi que tenho amigos para pegar na minha mão quando eu sentir medo


Descobri que tenho muito a aprender e que isso é um ciclo sem fim

Anna Paula Oliveira

quinta-feira, 29 de março de 2007

Fome /sede

Dias perdidos, onde eu não estava.
Escondida e contida no silencio violento de quem me comprimia
Um retrato sem cores na parede.
Minha casa
Um convite
Mesa posta
Comida esfriando sobre a mesa
Esperando por alguém que não tinha fome
Autofagia, não!
Eu tenho fome, mas também posso nutrir.
Famintos de mim


Anna Paula Oliveira

quarta-feira, 28 de março de 2007

CARTA DO ÚLTIMO ATO

Sabe aquela paz? Aquela, que você só encontra quando pega seu carro, toma a BR-101 até o município de Casemiro de Abreu, dobra à esquerda no trevo da rodoviária, depois à direita, à esquerda novamente, sacolejando 30 km por estreita estrada de terra até chegar ao último distrito de Macaé? Sabe? Se não sabe, experimente um dia. E melhor: faça como eu fiz, que descendo no arraial, tomei a pé o rumo das primeiras cachoeiras, subindo por quatro horas até o cume de 1400 metros, onde existe aquela pedra grande, com uma outra menor, incrivelmente equilibrada em cima da maior.

Seria meu último ato estar naquele lugar onde o litoral pode ser visto, e onde me vi cercado pelo Rio Macaé ao sul, pelo município de Macaé ao norte, por Casemiro de Abreu a leste, e por Trajano de Moraes e Nova Friburgo a oeste, esperando — talvez — um milagre que me impedisse de fazer o que lá fui fazer. A vida não mais valia a pena, ela se fora, perdi qualquer propósito, qualquer esperança e vocês sabem, sem esperança não dá.

Não, eu não estava sofrendo por amor não. Até estava, mas o fato é que ela não me deixou para ficar com outro ou porque se cansou de mim, mas porque lhe aconteceu o que ocorre com todas as pessoas boas que "caem" neste mundo: "a vida continua", "bola pra frente", "ela se foi, mas você está vivo”. Esse último argumento era o mais duro de ouvir!

Enfim, tentei levar a vida, depois de quase morrer de inanição, retomando o trabalho, os antigos projetos que esboçamos juntos, mas não deu: não tinha como continuar vivendo!

Seis meses se passaram, um ano, mais seis meses e nada: Nada da antiga alegria, do entusiasmo pela vida, da serenidade aprendida e praticada. Nada dessas coisas que amenizam a carga de ser homem. Então lembrei daquele lugar, onde fôramos juntos pela primeira vez e onde retornamos muitas vezes, com nossas mochilas, nossas lanternas, nossa barraca. Bom, se era para acabar com minha vida, extenuando a dor, tinha de ser lá. Eu sempre tive dessas coisas, tomar a decisão certa de forma inconsciente, mas olhem, daquela vez o destino jogou duro comigo. Foi assim, de repente:

— E aí, camarada? Tem um cigarrinho careta?

Quase vomitei pelo susto. Foi uma questão de instantes. Estava sozinho naquela imensidão dourada e eis que surge aquele cara, saído não se sabe de onde, sentado ao meu lado, pedindo cigarro.

— Tenho sim. — respondi, controlando o pânico, e estendi lentamente o maço inteiro para ele.

— Pra falar a verdade, não quero seu cigarro não. — disse rindo. - É que você não deve subir aqui sem guia. Sabe "qualé": é perigoso...

— Não ligo. — respondi expelindo o máximo de ranço que pude reunir. Afinal, aquele projeto de hippie, tatuado, com um cabelo comprido-imundo, calça rasgada e mais suja do que um pano de chão, estava obstando o meu grande plano de morrer em paz.

— Pois devia ligar, cara. Devia ligar. — seu sorriso era quase sarcástico.

— E posso saber por quê? — perguntei colérico.

— Ué!? Simples pô! — ele passou a mão pelo cabelo e colocou um tufo de fios encaracolados por trás da orelha direita:

— Porque a vida é beeeeeela... — e se deixou cair para trás, braços abertos, com uma cara de idiota, realçada por um sorriso ridículo. Desconfiei de que aquele sujeito tivesse "fumado" o Pico do Peito do Pombo inteiro.

— Sabe de uma coisa, "bicho”? — disse-lhe, procurando imitar o seu modo de falar. — Vou indo! "Inté" para você. Vou procurar paz em outra freguesia...

Levantei e comecei a catar minhas coisas, guardando cuidadosamente a seringa. Ele continuou deitado, apontando para algumas nuvens, com aquela mesma cara de imbecil. Por fim disse:

— Tu já vais? É cedo! Toma mais um copo! — ergueu-se pelos cotovelos, deu de ombros e amealhou: — Mas se já vais, desculpe qualquer coisa.

— Tudo bem, a culpa não é sua. Aliás, não é de ninguém...

— Vê se desce com calminha, camarada. Sem pressa, valeu?

— Tá bom. — minha raiva havia milagrosamente passado e eu já estava quase gostando dele — E vê se não demora pra descer, você também. Daqui a seis horas vai começar a escurecer. — recomendei-lhe.

Ele nada respondeu. Apenas se colocou de pé, caminhou para uma pedra arredondada, subiu-a, e ficou com as mãos para trás, olhando o horizonte. Parecia estar falando alguma coisa, mas não se podia ouvir o que era.

Peguei minha mochila, localizei a trilha por onde vim e dei exatamente 15 passos naquela direção, quando ele gritou:

— Augusto!

Virei a cabeça totalmente aturdido pelo hippie ter dito meu nome. Senti uma pontada de mau-jeito no pescoço.

— Deus te ama!

Fiquei tão confuso, que só consegui exprimir meio sorriso, numa concordância polida: "Deus te ama".

Dei-lhe as costas pela última vez e desci a elevação a passos rápidos, com o coração disparado e um arrepio gelado ao longo da espinha.

Vitor Souza

(Texto publicado no livro "Rio de Janeiro, uma crônica a cada dia", editora Litteris - RJ, 2003)

Muito obrigado por tudo/nada

Suas bocas sugando o sumo das nossas terras
Roubando nossas pequenas crianças
Muito obrigado por cuidar das nossas cabeças
Seus manipuladores
Muito obrigado
Por nada
Muito prazer
Por nada

Thank you for things!
Lembro dos seus grilhões nos pescoços
Fuck your lies...
Mickey mouse...
Fuck your lies
Hollywood...
Fuck your lies...
Magazine...
Fuck your lies...
Fast food!
Thank you for nothing...
Não lembro das suas liberdades.

Suas agulhas envenenadas
Seus sonhos corrompidos
Corvos pairando por nossas hortas
Ovos podres
Dentes podres
Mentes podres
Pobres...Somos todos nós...
Seus mentirosos...
Muito obrigado pelas suas mãos
Seus assassinos
Muito obrigado por cortar nossos pés...

Comemorem nossas glorias
Destrua heróis...
Canonize mentiras
Seu deus na tv
Das seis às nove
Seus mentirosos
Muito obrigado por tudo!

Plaz...

terça-feira, 27 de março de 2007

li(gi)a

lia lentamente o que dizia
aquela hora aquele sonho aquele dia
lia
pois o mundo se espraiava sob letras e palavras
e todas elas indicavam direção.
Houve então...
ouve!
há um grito
um choro distante
(mas não de tristeza
mas não de alegria)
ouve um grito que diria
- caso estivesse em mãos -
que a luz da noite ao dia
se embala em canção

Leandro Durazzo

segunda-feira, 26 de março de 2007

DE BICICLETA

Edson Feuser





Quando tenho insônia, saio de dentro de casa como quem foge de abelhas, passo a mão na minha bicicleta, e com a cara ao ar, pedalo noite adentro pelas ruas da cidade. Nas primeiras noites em busca de sei lá o que, tudo passava, sem tamanho, cor, endereço, era tudo parte de um torpor afogativo que só me impulsionava. Depois, como num estalo que o hipnotizador desperta o hipnotizado do transe, fui redescobrindo, o meio fio, os paralelepípedos, buracos de ruas de chão batido, as casas, as ruas, os prédios públicos, as fábricas, pontes, postes, mercados, açougues e a escola onde estudei até o segundo grau.
Como as coisas materiais estavam novamente em minha percepção, minha imaginação que me mantinha incomunicável, resolveu fazer contato. Como numa luz de uma visão, me avisou que pessoas viviam por detrás daquelas paredes e que eu os conhecia, tão bem que os havia deletado do consciente por não concordar com os papéis que representavam. Após, na primeira casa que passei, identifiquei as pessoas que ali moravam, dona Carla, casada há vinte anos com seu Marcos da padaria e seus quatro filhos: Maria Rogéria, Magda, Robson e Cláudio. Maria Rogéria era muito gostosa e insinuante, adorava rebolar e levantar a parte de trás da camisa para que os peões da obra por onde passasse olhassem com tesão sua bunda empinada. Namorava por conveniência com o filho do relojoeiro mais rico da cidade e tinha um fincante semanal na cidade vizinha que visitava toda quinta no horário do cursinho de inglês. Magda, minha rainha da bronha, tinha dezesseis... ai ai. É impiedoso para um quarentão sossegar os devaneios libidinosos com uma garota de dezesseis. Robson e Cláudio eram gêmeos uni vitelinos, do tipo cara de um, focinho do outro. Um pouco efeminados pelo carinho excessivo distribuído pela mãe e irmãs. OOOOOOOOOOOOOOO PORRA-, mas eu sou burro-, fico pensando nos outros e deixo a roda da bicicleta passar por um buraco e estourar o pneu. Que merda, oito quadras a pé. Bom, só assim me canso.

sexta-feira, 23 de março de 2007

POR UM MUNDO MELHOR

Eram versos curiosos, de uma música (*) estranha, em que no título aparecia a palavra blues, mas que eu não sabia bem se tratar de um blues. Enfim, versos estranhos que diziam assim:

“Onde estão os caras que lutavam no dia-a-dia,
Sem perder a ternura jamais?“


E a música seguia, ainda esquisita:

“Onde estão os caras que desenhavam novas cidades
Em guardanapos na mesa de um bar?”


— Ele está falando do Collor? — perguntou meu pai, logo depois que o refrão também perguntou:

“Onde estão as provas, onde estão os fatos?
As boas novas eram só boatos?”


— Porque contra o Collor não provaram nada! — o velho completou.

— Ele não está falando do Collor, não. — respondi distraído. — Acho que é uma outra coisa...

Meu pai saiu. Foi ver televisão. Meu sobrinho chegou. A música foi reprisada mediante a ação de dedos que ainda não haviam se acostumado ao micro-system daquela casa.

— Você gostou dessa música, tio?

Ouvi mais um verso antes de responder:

“Onde estão os caras que pregavam no deserto?
(O deserto continua lá)”


— Ele está falando de todas as ideologias, que um dia pregaram que o mundo poderia ser melhor. Gostei dessa música, sim, Gui.

O garoto sentou ao meu lado para ouvimos juntos o trecho mais sinistro da canção:

“Onde está o teatro mágico só para iniciados?”

Fiquei pensando se uma indagação como essa última poderia fazer algum sentido para um guri brasileiro, de 13 anos, que vive no interior do estado de Santa Catarina. Para mim, gente-grande, o verso me remete os seguidores de Aleister Crowle e seus rituais secretos e teatrais, movidos a LSD, lá pelos idos da década de 60. Aliás, todos as partes dessa música me remetem às grandes promessas de transformação que certos visionários pregaram ao longo do século 20. Promessas de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna: Promessas de um mundo melhor!

Uma agradável nostalgia (é sempre agradável à nostalgia) se impôs ao momento, e imagens oriundas da contracultura (que não vivi) sacudiram minha mente por entre as marés da história. E me senti bem. Mas depois me sinto mal:

Sabe, as pessoas desistiram! Nos anos sessenta, especificamente em 1968, uma imensa onda de insatisfação pareceu ter engolido todo o planeta. Focos de resistência ao sistema espalharam-se feito uma saudável praga: “a primavera de praga”, “a noite das barricadas”, “Woodstock”... Mas a onda perdeu a força, quebrou e retrocedeu. A resistência afrouxou. E o que restou? Esse mundo de guerra e fome, onde uma nação monopolizou um poder que deveria ter sido distribuído.

“Onde estão os atos de bravura e rebeldia
(Ternura guerreada dia-a-dia)?”


Infelizmente não tenho esperança com relação ao nosso mundo. Gostaria de poder fazer um discurso otimista, mas não dá. O ceticismo é mais forte do que eu. O grande oceano do capitalismo absorveu toda a onda da esperança.


Vitor Souza

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(*) Música “Segunda-Feira Blues”. Engenheiros do Hawaii.
Dançando no campo minado. BMG, 2003.

a paixão

para uma garota especial:


a alma parece fervilhar
nos sentimos bobos diante da razão
não sentimos a razão, emocionamo-nos
parece que flutuamos com os pés no chão
sentimos nosso peso, mas estamos leves
dá arrepios, tesão e tesão
soma-se mais tesão, vontade de transar
escrevo com emoção, sinto você no ar
falar de coisas assim parece me matar
saudade de quem nunca vi, saudade
nos dias passantes que terminam no crepúsculo
sinto o orvalho de seda de sua pele
e um tremor no estômago
vejo cores nas bordas cinzas do espaço
escuto músicas e verto lágrimas
acordo com seu gosto de frutas silvestres
durmo com seu cheiro de orvalho inebriante
tesão, tesão, ardor de te beijar
vontade de sua pele, sua boca e seus seios
vontade de suas pernas enlaçadas entre as minhas
de suas ancas sob o peso de minhas mãos
de seu pescoço lascivo em meus dentes
e da textura de seu ventre úmido de amor
do gozo inundando seus poros indecentes
da formosura do descanso na cama rota
os dois sôfregos exauridos de eletricidade
o fogo brota nos leves toques de ternura
seus cabelos percorrem minhas costas duras
seus lábios buscam cegamente outro suspiro
sinto sua língua devorar levemente os nervos rijos
e tudo se ergue em fúria mágica
você dança outro balé insano
e se abre franca me engolindo inteiro
a dança flui mais uma vez, dentes e uivos
gemidos tórridos, lágrimas sagradas
te sinto doce, seus olhos cerram
os lábios clamam minha boca tórrida
infla os peitos que chupo lânguidos
as posições transcedem, mudamos tudo
agora surge a loba de cio perene
vibra sua pele como fogueira crepitante
em transe sua boca novamente me engole
arranho sua pele desprovido de rumos
então tu te viras e me oferece o horizonte
penetro fundo, tu me cantas a glória
o ritmo acelera, um tesão oleoso
vertemos fluídos em jorros incandecentes...
o gozo outra vez, e outros gozos teremos


por: Cass

quinta-feira, 22 de março de 2007

A Prece de um Sonhador

Sonho em ser um homem bom, um homem simples, um homem verdadeiro. Sonho em poder ser aquilo que eu gostaria que os outros fossem. Digo palavras que nem sempre refletem minhas ações. Falo sobre o cisco no seu olho, cego devido à madeira na frente dos meus. Falo de humildade, mas vivo de orgulho. Canto sobre a liberdade, enquanto encontro comforto na opressão. Reconheco meus pecados, dificultando aceitar a vida como a vivo. Gostaria que fosse tudo diferente, gostaria de dar minhas riquezas aos pobres, abandonar o status e desistir da ambição. Queria ser santo, talvez viver os sermões que eu prego. Gostaria de escrever sobre o que eu vivo, mas não consigo viver o que escrevo. Tenho certeza que escreveria lindas palavras se somente pudesse viver aquilo que eu venero. Escreveria belos cantos para adorar a natureza. Ah, se somente eu pudesse ter a alma que planejei com tanta perfeição.
Maravilhosas são as criaturas, podíamos ser um pouco mais como elas. O sol que faz as plantas crescerem, a planta que faz os animais se alimentarem, e os animais que nos inspiram para agir em pureza e liberdade. Veja as libélulas comendo frutas silvestres, tomando gotas d’água de vez em quando. A vida não as deixará morrer devido à sua falta de ambição. Humildemente elas voam em direção ao céu, conseguindo um bem maior. Sejamos como as libélulas, felizes com pouco. Deixe-nos viver e ser feliz, rolando morro abaixo, rindo em campos de verde, banhando em mares de azul. A vida é a vida, e nada mais. Libertemos o homem que empregamos para nosso conforto, lavemos seus pés, devolvamos sua dignidade. Levantemos os homens que caem, perdoemos para sermos perdoados, amemos para sermos amados, ajudemos para sermos ajudados. Alimentemos o homem que morre de fome, agasalhemos o homem que sente frio, permitamos que vivam os destinados à morte.
Busquemos a vida na sua simplicidade. Não esperemos recompensas de propriedades celestes. Rezemos em ações, rezemos em pensamentos, esqueçamos os cânticos de prioridades alheias. Vivamos a vida como ela é, inspirados pelas libélulas. Cantemos com os patos e as ovelhas. Dancemos com o trigo e os chorões. Sejamos nosso próprios mártires todos os dias de nossas vidas. Estejamos dispostos a morrer pelo que acreditamos, sem nos corromper por conveniência. Usemos nossa coroa de espinhos ao invés de usar uma coroa banhada pelo sangue do homem que sofre. Amemos nossos assassinos, eles não sabem o que fazem. Saibamos que o ouro não nos dará mais um dia de vida, nem nos fará crescer um centímetro a mais. Não ajamos esperando o reino de Deus. Tragamos o Seu reino para nossas cidades, expondo paz em todas nossas ações e pensamentos. Vivamos assim. Essa é a minha prece.

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Guilherme Rocha

sexta-feira, 16 de março de 2007

Cartas

...Essas são as horas tenras de silencio e sinto o que está acima dos meus atos: o envolvimento. Trago em mim o caos, a ousadia e o tremor.Água a baixo, fogo acima, é sempre assim o que me motiva é o encontro da diferença.Tantas coisas matam os homens...Cada lágrima é o sangue de sal das facas que cortaram por dentro.Exilada em minha terra, vejo assim a minha alma.Pesar: sofrimento moral!Suicidei-me várias vezes, de outras fui omissa diante de minha própria agonia, quantas vezes tive que simplesmente deixar morrer!Segredos do meu intimo são estas orquídeas mortas expostas ao sol, isso se perdeu além dos limites do entendimento; venceu monstros mas se perdeu!Historias de nostalgia...
Procuro o manancial de prazer dos sentidos e é vão, é pouco, longe não chego...Existirá outra face?Ou serão vários os corpos que se encaixam em mim?A dúvida me atravessa, afinal quantos serão?Quantos passaram pela minha vida, trazendo a dor e o amor...Luz e morte do que vem e se vai.Quantas vezes morrerão meus amores, quantas vezes eu morrei?

Anna Paula Oliveira

quinta-feira, 15 de março de 2007

Doutor Macedo

I

"Não necessariamente meu querido sobrinho", diz a velha rabujenta, "eu posso muito bem encontrar a pessoa de minha vida em um cruzeiro desses. Não imaginas o número de contos de amor que já foram inspirados em cruzeiros no mediterrâneo. Um dia, na tv, um programa dava como prêmio essa viagem. Lá eles mostravam as fotos e só tinha gente bonita no barco. Os homens são todos cavalheiros e as mulheres todas são damas, a música toca suavemente enquanto o garçom serve champagne em taças de cristal. Dá até para ouvir a música se eu fechar os olhos."

Doutor Macedo retira o estetoscópio, e soltando um arroto silencioso ele se direciona à sua paciente.

"... os lençóis são de setim e as plumas de gansos da mongólia."

"Hum hum" , o doutor limpa a garganta. "Senhora Tavares, a senhora é assegurada?"

A velha continua, "os golfinhos perseguem o barco enquanto o sol se põe, donzelas jogam flores ao mar."

"Senhora Tavares, por favor."

A velha não se cala. O doutro a olha de relance e pergunta, " a senhora consegue me entender?"

A esse ponto, a velha já estava com os olhos virados. Seu batom já tinha se desmanchado desde que ela insistiu em saudar o doutor com beijos e abraços.

Suava muito a velha, e olhava fixamente para o teto.

"Assine aqui por favor". Insistindo, o doutor conseguiu a assinatura da velha senhora.

"Tenha um bom dia, volte sempre," diz ao direcioná-la à saída. Doutor Macedo chama a atenção de sua secretária que garantiria que Dona Taveres iria sair da propriedade.

II

Uma visita ao cabinete de licor torna tudo mais tranquilo.
"Manda entrar a próxima."

Uma jovem entra no consultório, ela se chama Julieta Campos, longos cabelos contornam sua beleza.

"Boa tarde senhora Campos," diz o doutor.

A jovem se senta na cadeira e se inclinando na mesa pronuncia todas as letras de "é senhorita Campos".

Doutor Macedo adora quando uma mulher lhe provoca.
"E o que está te incomodando?"

"Olhe doutor, eu ultimamente tenho sentido umas dores no meu quadril. Dói muito, especialmente nas piores horas."

"Quando estás fazendo amor?" perguntou o doutor.

"Não doutor, quando estou usando o banheiro", rebateu a jovem, um pouco ofendida.

"Sim, claro, me desculpe." Ele limpa a garganta. "Me diga, como surgiu essa dor? Talvez uma queda?"

"Não foi nada disso, na verdade eu sinto algo crescendo no meu quadril. Frequentemente sinto umas dores."

"Uma verruga? Não não, talvez estejas grávida. Minha mãe teve isso um dia."

Silêncio.

O doutor limpa a garganta novamente, "posso ver esta coisa que cresce em teu quadril, senhoRIta Campos?"

"Sim claro". Ela se levanta e abaixa levemente a sua saia, revelando nada mais do que a suava pele de seus glúteos.

"Mas senhorita, não há nada crescendo em seu quadril."

"É doutor, mas isso é porque eu sou esquizofrênica e imagino coisas".

O silêncio segue a revelação, o doutor olha a jovem em seus olhos, quer tê-la de qualquer jeito.

Finalmente ele fala, "Bem senhorita Campos, eu já lí muitos livros sobre a sua condição, livros da Inglaterra, da França, até livros da Argentina. Tens muita sorte que vieste até meu consultório jovem donzela, eu sou o único médico especializado em curar problemas como o seu."

"Mas eu acabo de dizer que eu não tenho nada, eu disse que eu imagino coisas, e eu imaginei que tinha algo crescendo em meu quadril. Talvez tenha exagerado em ter vindo até o senhor. Queira me desculpar por favor." E ela vai embora.

Nesse intervalo será necessário uma dose dupla, pensou o doutor.

III

Durante muitos anos, especialmente enquanto era residente em uma clínica de terceira categoria, doutor Macedo se preocupava em ter de mofar na rotina. Não preenchia formulários nem atendia velhas com artrite sem ser acompanhado por uma náusea suicída. Agora com 56 anos, o velho doutor pensava sobre o que tinha conquistado: um consultório, uma muda de alcoolismo, um jogo de facas importadas e uma pedra no rim que a qualquer momento lhe torturaria. Tudo lhe parecia patético mas ....

"Doutor , o senhor Barbosa está entrando." falou a máquina.
"Obrigado Deise" respondeu o doutor.

A porta se abre e um jovem adulto bem portado cumprimenta o doutor, "Júlio Barbosa" foi o que disse.

"Sim sim, por favor sente-se", convidou.
Sentou-se.
"Em que posso ajuda-lo?"

O jovem retirou seu paletó e, ficando a vontade na cadeira, comecou.
"Doutor Macedo, eu sou um representante de um grupo comercial de valores questionáveis. Precisamos urgentemente de um doutor sigiloso e o senhor foi recomendado."

O doutor pareceu confuso, "calma aí", retrucou, "você não tem doença alguma?"

"Não."

O doutor olhou para a janela. Pombos cagando.

"Temos uma situação", disse o jovem, "como talvez o senhor possa imaginar, nosso grupo tem que ficar longe de polêmicas que possam comprometer nossos investimentos." Uma breve pausa.
"Preciso que o senhor me acompanhe para ajudar meu irmão, ele foi baleado."

O doutor não hesitou, "sim, mas porque não chamaram uma ambulância?".

"Não precisamos de polícia ou mídia em cima de nós. Não posso estressar o bastante o quanto isso é importante."

"Quanto eu ganho?" Perguntou o doutor.

O jovem se pôs para rir, já tinha um plano e a ganância do velho não iria atrapalhar.

"Temos algumas informações que tenho certeza que o senhor não iria gostar de ver sendo publicadas."

O doutor estalou o pescoço, retirou seu óculos e perguntou, "o QUÊ você tem contra mim?"

O empresário retira de sua pasta uma outra pasta que continha uma pasta menor e despeja seus conteúdos na mesa do doutor.

"Prostitutas." Mostrou uma foto do velho de quatro sendo abusado por um jovem de decendência árabe.

"Drogas." Mostrou uma foto do velho injetando algo em seu braço.

"Corrupção." Mostrou uma foto do velho de sobre-tudo e óculos escuros.

"E ainda por cima ...", antes de concluir o doutor o interrompeu.

"Meu amigo, você não tem nada contra mim."

O jovem se levantou e insistiu, "sim, não legalmente, mas a sua reputação está em risco doutor Macedo."

O doutor se levantou e se dirigiu ao cabinete de licor, e se servindo disse, "Senhor Barbosa, eu não tenho reputação para manter."
Tomou um gole de sua bebida e abrindo a porta, convida o palhaço a sair.
"Publique o que quiser, eu não me importo."

O jovem se exalta e jura o fim do doutor.
"Isso não terminou seu velho safado."

Acende um cigarro e, já sentado, vê o uísque na fumaça. A porta fecha, lentamente e aguda. A mente confunde, o sol vira lua, as sombras espantam sonhos irreais. O vento vem vindo, o suor vai caindo, os olhos cansados esquecem de ver. Ouvidos fundidos, coração esquecido, a musa da vida que queria viver. A náusea do dia, o santo vigia, divindades deboches vomitando salvação. Cabeça girando, demônios dançando, bebidas nas veias de civilizações. O velho se vira, se segura e brinca que os jogos que joga não tem finalidade.

IV

"O senhor está bem?" perguntou a máquina.

O velho saiu do transe, "como sabes que eu não estou bem?".

"Doutor, foi só uma maneira de falar. O sujeito que saiu estava muito nervoso." disse a máquina.

"Certo certo...", o doutor limpou o suar de sua testa, "então .. o que é que você quer?"

"Saber se você está bem senhor."

"Por favor me deixe em paz." suplicou o doutor.

"E os outros pacientes?"

"Deixem eles esperando, vá comprar algumas revistas novas." sugeriu o doutor.

V

Que trabalho horrível, pensa o doutor. Apenas degenerados aparecem para consulta, todos os dias histórias desagradáveis, infecções nojentas e cheques sem fundo. Que incentivo existe para querer trabalhar com a saúde pública? "Que merda", pensa o doutor, ao beber mais uma dose de seu conhaque favorito. Pensa nos pacientes que esperam na sala abafada, sem ventilador ou ar-condicionado, suando bicas antes de seus exames de coração. O calor abaixando a pressão dos hipocondríacos, um ambiente de intercâmbio de víroses. "Porque eles vem até mim? Detesto o meu trabalho."

O doutor sai pela porta dos fundos diretamente para os corredores do hospital, longe de sua secretária e seus pacientes. Entra no banheiro e se lembra de quando começou a trabalhar, quando tinha uma licença médica expedida pelo Instituto Médico de Araripina do Oeste, que lhe dava permissão para praticar medicina, mas apenas em lavatórios dos hospitais do Recife. "Bons tempos" pensa o doutor lembrando-se de situações interessantes, como a vez que um jovem apareceu com um profundo furo que chegara ao pulmão. Urinando, se lembrou:

"Rápido minha gente, ele precisa de uma intervenção urgente. Doutor Toledo, por favor faça um corte em seu peito. Enfermeira, me traga uma colher de sopa, precisaremos fazer uma lobectomia." O doutor se mantinha calmo e, recebendo a colher, enfia ela dentro da privada para limpá-la.

"Doutor, não deverias esterilizar a colher?" Pergunta a enfermeira.

"Provavelmente," responde o doutor, "mas não temos tempo para isso".

"Doutor, o corte está feito." avisa Toledo.

"Então seja o que deus quiser." Doutor Macedo enfia a colher dentro do corte, entrando em contato com o tecido pulmonar do paciente. Mexe bastante, atrás de algo que apenas o doutor sabia o que era. O sangue jorrava para todos os lados, na enfermeira, no espelho, nas paredes do lavabo, nos olhos do doutor. "Doutor Toledo, por favor, ponha pressão em seu estômago." E ele seguia as instruções, fazendo cada vez mais sangue jorrar.

"Doutor, não achas que deveríamos anestesiar o paciente? Quem sabe um pouco de morfina?" Sugeriu a enfermeira.

"Acabou o estoque, o vigia da noite tomou tudo para ver qual era a onda...não pare! empurre mais forte."

Após alguns minutos de sangue por todo o lado, o doutor finalmente retira do pulmão um tumor do tamanho de uma cereja. "Achei!"

As máquinas apitam, o batimento cardíaco do paciente para.
"Doutor, ele se foi."

"O trabalho está cada vez mais difícil", lamenta o doutor. Ele vai ao seu gabinete de licor. "Que merda! Tem alguém roubando minha bebida! Esses jovens de hoje em dia estão fora de controle.”

O doutor termina de mijar e ri de sua lembrança. Ele vai à pia para lavar as mãos e se olha no espelho. Cada dia mais velho, rugas de um velho chato, olhos de um velho sem esperança, cabelo de um velho indiferente, dentes de um velho boêmio. Velho desiludido que nunca foi amado, criando fantasias para justificar a inércia de seu coração. Joga água no rosto e volta para os corredores do hospital.

VI

Andando de volta para seu consultório, doutor Macedo dá de olho com uma jovem e bela enfermeira que sempre evita o seu olhar. Deise é o nome dela, o alvo do amor incondicional e doentio de Macedo, a destinatária de suas cartas de amor... ao se cruzarem, o doutor fala "Deise, da próxima vez me traga uma foto 3x4 para eu colocar na minha carteira", mas a enfermeira continua andando, fingindo que o comentário não tinha sido destinado a ela.

O velho vai para seu consultório e, sentado, abre a gaveta, retira um pedaço de papel e começa a escrever mais uma carta.
Ele se serve de conhaque e continua.
Muito honesto, tem que fazer ela se sentir importante.
Ela nasceu para o doutor, porque ela não percebe o que eles têm?
Pondo o ponto final na carte, o velho se serve de uma outra dose de conhaque e, acendendo um cigarro, suspira satisfeito.

VII

O problema não é o amor, mas sim a forma em que nos amamos. Assistimos aos melhores momentos da paixão perfeita na televisão, acompanhada da trilha sonora de um romântico tesão, e sem pensar a respeito, criamos as expectativas que corroem nossos sentimentos reais. O velho amava, mas era um doente. O velho via em sua musa alguém que poderia o fazer melhor, e sem respeito às suas vontades, se aproximara vulgarmente. Não deixara de acreditar no amor, mesmo com constantes manifestações de repulsa.

"Mas dessa vez será diferente," pensa o velho.
A jovem era casada, e acreditem, nada indicava que ela teria algum interesse no nosso doutor. Os anjos e diabos de seus ombros viriam a conversar sobre a situação, mas antes o velho se lembrava do primeiro encontro com Deise.

Perambulava pelos corredores com um café na mão. O velho, cinco anos mais jovem, pensava apenas em retornar ao seu consultório. Tinha tomado uma pílula recomendada por um paciente e se sentia bem. Passando pela sala de cirurgia, Doutor Costa, um doutor experiente, pede a presença de Macedo na operação. Doutor Macedo, afetado, porém consciente de suas responsabilidades, entra na sala e coloca o vestuário apropriado. Doutor Costa, Doutor Gonçalvez e a enfermeira mais linda já vista pelo velho doutor estavam presentes.
"Doutor Macedo, preciso que você colabore com a enfermeira e a ajude com os equipamentos." Ordenou Doutor Costa.
"Sim, claro, mas é claro." Respondeu o intoxicado doutor.

A operação era simples, apenas uma intervenção contra um aneurismo na aeorta da paciente, uma velha inconsciente com uma cara de quem estaria pedindo para morrer. A enfermeira era linda, e pediu que o doutor colaborasse e passasse a ela os instrumentos de trabalho. O doutor alegremente aceitou tudo que lhe foi dito.
"Bisturi", pediu a enfermeira.
O doutor pega o bisturi e passa para a enfermeira, que passa para o doutor Costa.
"Navalha", pediu a enfermeira.
O doutor pega a navalha e passa para a enfermeira, que passa para o doutor Costa.
"Dilatador", pediu a enfermeira.
O doutor pega o dilatador e passa para a enfermeira, que passa para o doutor Costa.

"Como estou ajudando?" o velho se perguntava, deliciosamente distraido pelas frases tenras da enfermeira.

"Agrafo cirúrgico", pediu a linda enfermeira Deise.
"Não sei o que é isso querida," responde o doutor.

A jovem aproxima-se da mesa e pega o instrumento dizendo, "isso é um agrafo, seu bobo."
A partir desse dia, o doutor nunca mais se esqueceria da imagem dos olhos profundos de sua querida Deise fixados nos seus enquanto ela comentava sobre sua incompetência.

A cirurgia parece correr bem. Doutor Costa trabalha concentrado junto com o doutor Gonçalvez. Deise se aproxima dos aparelhos para anotar leituras e pede para o doutor pegar o gastroscópio da paciente.
Nosso doutor, sem pensar duas vezes, chega junto de Deise e cochicha em seu ouvido, “que tal brincarmos de adivinhação? Você senta na minha cara e eu tento adivinhar o teu peso".
Desde então nada prometera acontecer entre os dois.

O doutor olha para o teto ao se lembrar do encontro, dá um trago de seu cigarro e pensa na carta que acabar de escrever. "Desta vez ela perceberá o quanto a amo". O velho se apaixonou ao escrever esta carta, mesmo sabendo que um dia mandaria a mesma para uma outra qualquer. Ele se apaixonou pela sua capacidade de amar. Tinha várias pretendentes e tentaria a sorte com todas, pois o amor é reciclável. Mandaria para uma de suas damas ou uma de suas putas talvez.

Sentado em sua embriagez, a cabeça descansa na parede enquanto a fila não para de crescer.

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Guilherme Rocha

segunda-feira, 12 de março de 2007

Carlos Passos

Quando saltei do elevador encontrei o Carlos Passos advogando, mas de bermuda e camiseta. Com a fabulosa barriga e o jeitão carioca, seus olhos brilharam sobre minha tralha de pesca.
- Aí, ruço, a gente precisa combinar uma pescaria junto.
- E emergiram-se as histórias, as saudades das pescarias no Rio, divididas entre grumari, guaratiba, sernambitiba. Do tempo em que a praia de Ramos ainda não era uma lagoa de merda; e tantas lembranças que seus cinqüenta e poucos anos guardavam como coisas boas da vida. Minha inveja das pescarias de Carlos Passos foi grande. Antes de pegar no sono merecido de um domingo cansativo no mar, fiquei imaginando o velho arremessando daquelas pedras gigantescas de Grumari, onde os peixes vivem felizes e fartos de um dos mais belos lugares da terra. Dormi vendo o azul do céu e do mar do Rio confundindo minha visão.
O dia seguinte era meu: a segunda-feira gosta de mim porque gosto dela. Saindo do condomínio, lá estava Carlos Passos de queixo levantado, barbeado, terno preto, pasta 007, na parada de ônibus.
- Quer uma carona? – Pergunto.
Uns dez quilômetros depois ele entrava no fórum com uma pescaria combinada para a primeira maré de domingo, quando a cheia ultrapassaria sete metros lá pelas quatro e meia da manhã. Fui ao centro da cidade: extrato no banco, um coco na praça João Lisboa, dois expressos numa lanchonete sebosa, da rua do Sol e, meio-dia, hora de ir pra casa. Quando vou virando o retorno pra pegar a ponte lá está o Carlos Passos, mas o trânsito violento do local não me deu chance de parar. O tédio do engarrafamento me fez rapidamente esquecer que o Carlos Passos cozinhava no sol do meio-dia, na panela de pressão: seu terno preto.
Na terça de manhã estou de saída na portaria do prédio. Edimilson, o zelador:
- Carlos Passos morreu.
- O quê?
- Carlos Passos, o senhor não conhecia? Aquele advogado...
Ora, se eu conhecia o Carlos Passos! Caminhei com aquele trejeito zumbi de filme hollywoodiano. O dia anterior veio como um filme de baixo contraste; nele o Carlos Passos era o personagem principal. Eram tomadas perfeitas de minha realidade visual histórica, mas meu ínfimo lado metafísico me dava de castigo uma figura sempre ao lado de Carlos Passos. Era uma figura hialina, sutil, de olhar sarcástico, dirigido, não ao Carlos Passos, mas a mim. Um olhar de quem diz: “olha eu aqui”, semelhante ao onipresente olhar divino; e eu sentia um calafrio, uma consciência pesada por não ter parado e dado uma carona para o Carlos Passos que cozinhava dentro do seu terno preto no calor do meio-dia.
O resto da semana foi comum como um bocejo discreto. A morte já não estava em canto algum. De minha janela eu via, no prédio ao lado, o apartamento vazio de onde o Carlos Passos me acenou pela última vez, no reveillon, pouco antes de sua morte.
No domingo, às quatro e meia da manhã eu estava sozinho em meu catamarã, no meio da Baía de São Marcos. Joguei na água uma dúzia de cravos e comecei a pescar em silêncio, em homenagem ao meu vizinho carioca Carlos Passos.


Geraldo Iensen, Do livro O Legado de Torres, de 1997

- Pausem suas Literaturas -

Incitado por um contundente parágrafo pretensiosamente político, resolvo, política e incorretamente, escrever sobre o produto de uma árvore morta por uma política neo-liberal-individualista-pseudoesquerdizada que supervaloriza o eu e cria fantasmas sociais não vistos e não atingidos.

Pausa para pergunta. Que função tem o alarde da imprensa de que turistas em Copacabana (?) tiram uma foto de férias enquanto um corpo jaz morto na calçada no fundo da figura? Veja bem. Pode me crucificar, mas aprenda a criticar. Facilmente recaímos para a insensibilidade individual que nos faz monstros opressores e egocêntricos. Se não nos interessa, não vemos. Você realmente acredita nisso?

Se sim, procure uma escola neo-hippie, matricule-se nela e aprenda a valorizar a realidade e a sensibilidade “inerentemente” humanas em todas as suas nuances. Você vai se comover com o corpo estendido, e convocar a multidão de cartazes e lágrimas aos gritos de basta, numa dança ritual ao redor do corpo, que, paradoxalmente, vai continuar lá.

Você acha que há alguma função maniqueísta por trás de uma notícia dessas? O que acontece com chamadas deste tipo? O alarde para a violência urbana muda alguma coisa, ou promove uma linha argumentativa a favor de que somos maus-elementos que devemos nos tratar e autorizar a censura a almas podres? Pois bem! Tome coragem e autorize! O governo é uma corja! Meninos jogados em sacos? Que mãe filha-da-puta! Vamos enforcá-la! Justiça social, já! Somos culpados donos da moralidade que sabemos quem e quem presta!

Você é cético e acha que é isso mesmo? Enterra os cadáveres do passado e acha que nada se pode oferecer em favor de alguma mudança?

Não faço opção. Não se conhece o homem. A minha urgência é que se conheça o homem à revelia de discursos que o revestem de moralidade e culpa. Conheçamos. Aprendamos. Se soubermos porquês, poderemos alterar probabilidades. Não as da foto do cadáver na calçada. Simplesmente, não haveria cadáver.
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Mateus Souza, não escrevendo nem um conto, nem uma poesia.

sábado, 10 de março de 2007

Nos trilhos (parte I)

Não acredite muito nessas linhas, só em algumas, noutras pode ler, mas sem perceber que o fim se aproxima mais rápido do que os trilhos podem suportar. E já não te cansa mais essa melodia triste toda tocando o tempo inteiro perto do ouvido, o que te faz bem é aquilo que me machuca, mas eu gosto é de sentir medo, ver a espinha gelar e perceber que o que faz bem me deixa deprê. Mas eu busco o Bom. Deixa eu viver.

É estranho, então, entender que de forma tão sucinta quanto a palavra sugere você mude seu lar tão rápido que sequer espera eu pentear os cabelos. Deixou o quarto abafado, o chuveiro estava no quente, queimou a pele, criou pequenas dores, mas satisfez.

Era um doce saber de tantas coisas amargas, por isso ele optou por ser melhor, não mais que eu ou você, porém, maior que ele. Deixa estar, deixa ser, tudo a de vir como fora combinado, a não ser que você queira sair, fugir. Estamos tão perto da chegada, que a partida metralhou nossos corações de saudades. Eu entendo perfeitamente o que te faz sentir assim, eu havia pensado nisso antes, eu até me vesti dessa forma também, é como um déjàvu.É tão transparente que racho a cara ao ir ao teu encontro, percebo que não é mais assim. As coisas mudam, enquanto isso o tempo passa e as roupas secam no varal, no meu varal abandonado, pois faz tempo que não tomo banho, só pra não apagar esse cheiro e sentir que mora comigo.

Mas do que se imagina, se faz. E mais ainda quanto mais corre o tempo, quanto mais se faz o canto de um pássaro novo. Talvez possas se sentir assim em relação à tantas coisas ao teu redor, que fazem parte do meu redemoinho de coisas confusas na cabeça maluca pensante e desastrada. Eu derrubo em ti um pote de mel, de um tipo tão doce que você nem reclama, apenas lambe tudo, numa forma felina de se limpar. Assisto a tudo isso com certo entusiasmo, porque eu gosto dos gatos, me sinto até um em determinada situações e percebo como você imita bem a natureza desses bichos.

Um carinho doce como esse mel, eu tento fazer, mas a minha mão machuca quando toca, parece um toque de Midas da dor. Você se afasta e escolhe um canto longe e aconchegante para viver, apenas te contemplo triste, queria poder me aproximar. Talvez seja perigoso demais. Talvez não seja nada demais...


Tainá Silêncio do Amor

Veneno doce da minha insensatez

Vinho me lembra filmes em preto e branco que deixei guardados na estante empoeirada do meu quarto, velhas lembranças que hoje não passam de recordações do tempo que eu sabia quem eu era.Quero mais, isso é um convite sente para beber comigo.Porque o vinho desperta sentidos em mim.Quero viver, fique aqui e respire o ar das noites de inverno quando chove, minha boca um beijo demorado, um sorriso ou apenas um encontro nosso; palavras do que sou eu ou do que seria de nós se a noite não tivesse fim...Porque o vinho...Ele me leva...Ele me permite...Ele me faz desaprender o que é errado...É o que o vinho faz comigo...Eu quero mais uma garrafa!

Anna Paula Oliveira

sexta-feira, 9 de março de 2007

Cronos e Réia



I

No décimo quarto dia do segundo mês, Deus, em sua onipotência, resolveu fazer uma cesta para refletir. Após um minuto de infinito, decidiu que seu acordo com os homens sobre não destruir a terra com água expirara, e retirou o único arco-íris que coloria um céu distante naquela tarde do dia segundo.

Pepo, parado no ponto de ônibus, fumava um cigarro sorridente. Mesmo ensopado daquela chuva intrometida de dias de sol, sorria com o seu cheque salarial de quatrocentos e quarenta e seis rúpis no bolso. Naquela tarde escurecida pelas nuvens, indícios do parecer divino já se apresentavam misteriosamente. Há uma hora esperando, pepo foi abordado por um vagabundo de luxo: vestia um resto de terno com um meio cinto social e uma bermuda encardida e suja. Pediu-lhe um cigarro. Coisa normal entre os vagabundos da cidade, à exceção de que este falava inglês e segurava um maço de revistas de negócios. Pepo, curiosamente, não se deteve no refinamento do vagabundo e ainda trocou duas palavras em inglês oferecendo-lhe dois cigarros, um para mais tarde. Curioso mesmo foi ver o velho Rildo assobiando por entre os guarda-chuvas revoltosos. Parecia não se incomodar com o caos da cidade, e embicava uma cantiga em uchinaguchi, língua de seus ancestrais okinawenses. Aquele sim era um homem curioso do qual pepo nunca esquecera. Não teve coragem de abordá-lo, apenas deteve-se a caminhar um pouco atrás dele por entre as notas orquestralmente assobiadas, até se perder por entre árvores gotejantes.

Trepou numa árvore para ver mais adiante. Alcançou o último galho - daquela altura os pingos pareciam mais grossos. Uma fabulosa vista de sombreiros abertos como um tapete negro de pontinhas prateadas. Pares de vaga-lumes gigantes iluminando as ruas em uma fila interminável de carros, um velho tremendo de frio ,gentilmente acudido por uma índia que ofereceu-lhe abrigo em sua metade de guarda-chuva, um menino gordo abraçava a mãe cansada e pensativa, uma pedinte invadia ônibus executivos implorando por trocados para comprar um isopor, uma vez que as cervejas para o carnaval seriam doadas a ela pela paróquia (uma estória interminável), um senhor grisalho acenava para cada táxi que passava, como se sua vida dependesse da chegada ao destino, e torcia as suas rugas cada vez que percebia a bandeira de lotação acesa. Pepo via, acendia mais um cigarro e continuava a espreitar. Naquele instante não se erguia sobre qualquer mureta - era a sua própria árvore, de onde podia observar o mundo no calor das chuvas. Ninguém o notava, nada o incomodava e até o cheque desceu-lhe os bolsos rumo ao bueiro sem nenhum gesto de apego.

Uma gota grossa cutucou-lhe o ombro, e Pepo olhou para o céu distinguindo um feixe luminoso pendendo de uma nuvem cinza. Cruzou um longo olhar com o feixe – ele e sua árvore. Sua boina pingava um colírio azedo em seus olhos, mas nada parecia o incomodar. Sentia na espinha um frio jamais experimentado em sua infância triste e recolhida, e soluçou toda aquela água jogada do céu com sua lágrima amarga.

II

Naquele mesmo instante de reflexão e decisão, onde o tempo dos homens contava-se em longas horas marcadas em relógios esportivos, Deus abriu uma janela por entre nuvens para espiar. Do alto de seu castelo de luz, avistou um homenzinho de seus vinte e três anos no topo de uma árvore. Mirando seus olhos, viu a beleza de toda uma vida sonhada e não vivida, e encheu-se de compaixão. Por um segundo aquele sentimento demasiado humano ofuscou-lhe a onipotência e as horas humanas se perderam. Já era tarde demais e a cidade submergiu em água. Só restava Pepo. Pepo e sua árvore.
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Mateus Souza

quarta-feira, 7 de março de 2007

Notas de Guardanapo


Já andava cansado de me esgueirar bêbado pelos becos imundos daquela minúscula cidade. Algo muito louco e lisérgico havia acontecido, mas não sabia dizer o que exatamente.

-Quando sai o ultimo ônibus pra cidade?
-Não sei, já está tarde. Deve ter saído.

Putz, onde iria dormir com 10 reais? E a fome? Decidi por um café. Um bom cafofo na rodoviária parecia interessante. O cardápio ficava no guardanapo (escrito mesmo de caneta, naquele porta-guardanapo de inox de lanchonetes), e tudo continua esquisito demais. Uma média. Preço: um sorriso convincente. Hãn? Como um pão com café custaria um sorriso? Onde diabos estou?

-Uma média, por favor!
-Com essa cara, não dá nem pra água. Não leu o cardápio?
-Eu pago porra! Não aceitam dinheiro aqui não é?

O cara se convenceu (ou comoveu-se com minha cara de ameixa faminta) e me deu um pão duro com um pouco de café com leite. Mais café do que leite. Comi avidamente, e continuava a estranhar tudo, inclusive minha fome. Havia uma escadinha que, deduzi, daria em alguns quartos. Resolvi subir. Uma bonita moça de pernas cruzadas tomava café numa mesinha suja. Por algum motivo pensei que era ela a responsável pelo lugar e resolvi lhe pedir um quarto. É engraçado imaginar a quantidade de armas que alguém pode guardar nas baias da alma, pois, ao ser perguntada sobre o preço (dos quartos, obviamente), a moça deu de ombros lançando-me uma gargalhada estridente e perguntou: -Fedido, tenho eu cara de puta? Cara de puta? Mas eu só pedi um quarto merda! Ela deveria estar sem foder há alguns dias, senão não me compreenderia tão mal (mal? Pregas do inconsciente...). O fato é que poderia dormir com ela, mas não depois disso. Resolvi esperar nas ruas o amanhecer para tomar um ônibus

O ônibus me encontrou babando e dormindo no banco da parada, encostado numa lavadeira de ombros gordos e macios. E foi ela mesma quem me avisou da chegada, ao que eu agradeci imensamente. Ela bem que poderia ser minha mãe, me dando seu colo carnudo de trabalhadora, e me avisando das chegadas e partidas. Minha mãe, mesmo muito amiga, nunca havia sido dada a afagos, e aquele ombro sonhou-me o mais próximo de maternal que pude experimentar. A passagem custou o suficiente para que eu tomasse apenas um café na estrada. Procurei um lugar confortável para me sentar, silencioso para ser mais preciso, mas o único disponível era ao lado de um cara magro, com muitas tatuagens de santos, do tipo dos “chicanos” de prisões americanas. Bom, vamos lá, pensei.


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Mateus Souza (republicando revisado)

terça-feira, 6 de março de 2007

Um Amor Ébrio

Minha querida Deise,

Flerto já há um tempo com impulsos onde velhos como eu se apaixonam por lésbicas sempre no começo do outono.
Mas estou de pé em nossa casa, portanto não se preocupe, seguiremos o plano, crie coragem, pule da sua janela para os meus braços e riremos como nossos eternos ídolos, os mascotes das caixas de cereal.

Tudo dará certo se você se comprometer ao sonho de sonhar um sonho em comum com um sonhador, criando imagens que se tornaram, tornam e tornarão simples refrões de uma música melancólica que poderia rimar com cólica não fossem suas paranóias e obsessões.

Não as vês? As paródias do correto, as traduções de dialetos inventados por nosso amor?
Não vês? O pinico no infinito que limpei pra te impressionar?

Estarei esperando ansioso o retorno de seus beijos que nunca recebi fora aquela vez que levei um fora e ralei o joelho caindo da bicicleta importada emprestada do meu irmão,
e lá você, doces lábios de açaí adocicado, beijando a pessoa que eu queria ser.

Acho que faria bem o papel de seu pai
com você ou por você, decida como queres me ver,
cuidando e assistindo o seu crescimento ou infiltrando os orifícios que como pai diria para você proteger.

Pode ser uma bela vida essa nossa,
filhos mistos correndo pelo jardim enquanto declaro versos para os pássaros que engaiolamos para não termos que sair nunca de casa.
Guaraná e brigadeiro na casa do vizinho e uísque na mamadeira da minha avó banguela que não tem onde morrer.

Andaríamos de mãos dadas pelo subúrbio da casa de seus pais, jogando neve um no outro e convidando seus parentes para um jogo erótico no chão da cozinha.
Pentearia meu cabelo pra conquistar o seu pai,
os joelhos juntos e uma náusea sob controle.
Contaria de minha vida e de meus amigos artistas que, por razões desconhecidas, semeiam flores mal brotadas.

Se rirmos juntos pra demonstrar o quanto não nos importamos com os inimigos de nosso amor, seremos felizes e assim eu poderei facilmente contar aquelas histórias passadas que te contei pra te conquistar.

Será assim nosso casamento: olhos persistentes, um bolo de ilusão, minha mal amada sogra me observando. Teremos uma bela lua de mel quando todos os recepcionistas e manobristas saberão que terei uma gostosa noite com você. Mas sabe o que? Eu me recusarei a transar!
Passarei dias contemplando as paisagens de nosso paradisíaco destino, pensando na vida longe do matrimônio.
Assim eu quero ver o olhar decepcionado daquelas figuras engomadas.

Uma vez fui a um casamento e vi no fluxo de almas uma razão para me rebelar,
pois vi a silhueta de um trouxa pregando no altar enquanto um monge folgado admirava o meu sobrinho.
Foi lá que vi a sina recusar uma impotente iluminação.
Depois vi um monge e um hippie cantando uma oração, de utopias ingênuas e com frases clichês, bêbados pelos becos da vila.

Mas não posso me controlar, ao beber mais uma dose de um remédio qualquer que não te fará bem se você não quiser morrer.
Deise, eu quero escovar seus cabelos, fazer as unhas de seus pés e remediar aquele inchaço no seu intestino.
Quero lamber as lágrimas do desespero do seu parto, apertar um cigarro pra hora de seu infarto, chorar as lágrimas de seu falecido pai, relembrar traumas perdidos de um bom tempo atrás.

Não vês meu bem? O que tenho a oferecer? Meus laços para presente e minha direct tv?
Meu livro de poemas e minha sanduicheira? Minha alma vendida no sebo dos infernos?
Não vês meu bem que podes confiar, no meu gosto, meu cheiro, minha vontade de amar?
Não vês que eu quero o que tu queres também? um marido vestido, uma Mercedes Benz?
Nossa casa um chiqueiro, manchas de desilusão, sua sujeira, seus vícios, suas determinações.

Pense bem minha querida, o que queres da vida, como é que tu lidas com a eterna armação,
de um pobre coitado, venerado e escravo, um exemplo, um filho de uma velha ficção.
Aprendiz de um santo, viciado em absinto,
uma figura rica em contradições.

Te amo,
Doutor Macedo, PHD



-Guilherme Rocha