quinta-feira, 15 de março de 2007

Doutor Macedo

I

"Não necessariamente meu querido sobrinho", diz a velha rabujenta, "eu posso muito bem encontrar a pessoa de minha vida em um cruzeiro desses. Não imaginas o número de contos de amor que já foram inspirados em cruzeiros no mediterrâneo. Um dia, na tv, um programa dava como prêmio essa viagem. Lá eles mostravam as fotos e só tinha gente bonita no barco. Os homens são todos cavalheiros e as mulheres todas são damas, a música toca suavemente enquanto o garçom serve champagne em taças de cristal. Dá até para ouvir a música se eu fechar os olhos."

Doutor Macedo retira o estetoscópio, e soltando um arroto silencioso ele se direciona à sua paciente.

"... os lençóis são de setim e as plumas de gansos da mongólia."

"Hum hum" , o doutor limpa a garganta. "Senhora Tavares, a senhora é assegurada?"

A velha continua, "os golfinhos perseguem o barco enquanto o sol se põe, donzelas jogam flores ao mar."

"Senhora Tavares, por favor."

A velha não se cala. O doutro a olha de relance e pergunta, " a senhora consegue me entender?"

A esse ponto, a velha já estava com os olhos virados. Seu batom já tinha se desmanchado desde que ela insistiu em saudar o doutor com beijos e abraços.

Suava muito a velha, e olhava fixamente para o teto.

"Assine aqui por favor". Insistindo, o doutor conseguiu a assinatura da velha senhora.

"Tenha um bom dia, volte sempre," diz ao direcioná-la à saída. Doutor Macedo chama a atenção de sua secretária que garantiria que Dona Taveres iria sair da propriedade.

II

Uma visita ao cabinete de licor torna tudo mais tranquilo.
"Manda entrar a próxima."

Uma jovem entra no consultório, ela se chama Julieta Campos, longos cabelos contornam sua beleza.

"Boa tarde senhora Campos," diz o doutor.

A jovem se senta na cadeira e se inclinando na mesa pronuncia todas as letras de "é senhorita Campos".

Doutor Macedo adora quando uma mulher lhe provoca.
"E o que está te incomodando?"

"Olhe doutor, eu ultimamente tenho sentido umas dores no meu quadril. Dói muito, especialmente nas piores horas."

"Quando estás fazendo amor?" perguntou o doutor.

"Não doutor, quando estou usando o banheiro", rebateu a jovem, um pouco ofendida.

"Sim, claro, me desculpe." Ele limpa a garganta. "Me diga, como surgiu essa dor? Talvez uma queda?"

"Não foi nada disso, na verdade eu sinto algo crescendo no meu quadril. Frequentemente sinto umas dores."

"Uma verruga? Não não, talvez estejas grávida. Minha mãe teve isso um dia."

Silêncio.

O doutor limpa a garganta novamente, "posso ver esta coisa que cresce em teu quadril, senhoRIta Campos?"

"Sim claro". Ela se levanta e abaixa levemente a sua saia, revelando nada mais do que a suava pele de seus glúteos.

"Mas senhorita, não há nada crescendo em seu quadril."

"É doutor, mas isso é porque eu sou esquizofrênica e imagino coisas".

O silêncio segue a revelação, o doutor olha a jovem em seus olhos, quer tê-la de qualquer jeito.

Finalmente ele fala, "Bem senhorita Campos, eu já lí muitos livros sobre a sua condição, livros da Inglaterra, da França, até livros da Argentina. Tens muita sorte que vieste até meu consultório jovem donzela, eu sou o único médico especializado em curar problemas como o seu."

"Mas eu acabo de dizer que eu não tenho nada, eu disse que eu imagino coisas, e eu imaginei que tinha algo crescendo em meu quadril. Talvez tenha exagerado em ter vindo até o senhor. Queira me desculpar por favor." E ela vai embora.

Nesse intervalo será necessário uma dose dupla, pensou o doutor.

III

Durante muitos anos, especialmente enquanto era residente em uma clínica de terceira categoria, doutor Macedo se preocupava em ter de mofar na rotina. Não preenchia formulários nem atendia velhas com artrite sem ser acompanhado por uma náusea suicída. Agora com 56 anos, o velho doutor pensava sobre o que tinha conquistado: um consultório, uma muda de alcoolismo, um jogo de facas importadas e uma pedra no rim que a qualquer momento lhe torturaria. Tudo lhe parecia patético mas ....

"Doutor , o senhor Barbosa está entrando." falou a máquina.
"Obrigado Deise" respondeu o doutor.

A porta se abre e um jovem adulto bem portado cumprimenta o doutor, "Júlio Barbosa" foi o que disse.

"Sim sim, por favor sente-se", convidou.
Sentou-se.
"Em que posso ajuda-lo?"

O jovem retirou seu paletó e, ficando a vontade na cadeira, comecou.
"Doutor Macedo, eu sou um representante de um grupo comercial de valores questionáveis. Precisamos urgentemente de um doutor sigiloso e o senhor foi recomendado."

O doutor pareceu confuso, "calma aí", retrucou, "você não tem doença alguma?"

"Não."

O doutor olhou para a janela. Pombos cagando.

"Temos uma situação", disse o jovem, "como talvez o senhor possa imaginar, nosso grupo tem que ficar longe de polêmicas que possam comprometer nossos investimentos." Uma breve pausa.
"Preciso que o senhor me acompanhe para ajudar meu irmão, ele foi baleado."

O doutor não hesitou, "sim, mas porque não chamaram uma ambulância?".

"Não precisamos de polícia ou mídia em cima de nós. Não posso estressar o bastante o quanto isso é importante."

"Quanto eu ganho?" Perguntou o doutor.

O jovem se pôs para rir, já tinha um plano e a ganância do velho não iria atrapalhar.

"Temos algumas informações que tenho certeza que o senhor não iria gostar de ver sendo publicadas."

O doutor estalou o pescoço, retirou seu óculos e perguntou, "o QUÊ você tem contra mim?"

O empresário retira de sua pasta uma outra pasta que continha uma pasta menor e despeja seus conteúdos na mesa do doutor.

"Prostitutas." Mostrou uma foto do velho de quatro sendo abusado por um jovem de decendência árabe.

"Drogas." Mostrou uma foto do velho injetando algo em seu braço.

"Corrupção." Mostrou uma foto do velho de sobre-tudo e óculos escuros.

"E ainda por cima ...", antes de concluir o doutor o interrompeu.

"Meu amigo, você não tem nada contra mim."

O jovem se levantou e insistiu, "sim, não legalmente, mas a sua reputação está em risco doutor Macedo."

O doutor se levantou e se dirigiu ao cabinete de licor, e se servindo disse, "Senhor Barbosa, eu não tenho reputação para manter."
Tomou um gole de sua bebida e abrindo a porta, convida o palhaço a sair.
"Publique o que quiser, eu não me importo."

O jovem se exalta e jura o fim do doutor.
"Isso não terminou seu velho safado."

Acende um cigarro e, já sentado, vê o uísque na fumaça. A porta fecha, lentamente e aguda. A mente confunde, o sol vira lua, as sombras espantam sonhos irreais. O vento vem vindo, o suor vai caindo, os olhos cansados esquecem de ver. Ouvidos fundidos, coração esquecido, a musa da vida que queria viver. A náusea do dia, o santo vigia, divindades deboches vomitando salvação. Cabeça girando, demônios dançando, bebidas nas veias de civilizações. O velho se vira, se segura e brinca que os jogos que joga não tem finalidade.

IV

"O senhor está bem?" perguntou a máquina.

O velho saiu do transe, "como sabes que eu não estou bem?".

"Doutor, foi só uma maneira de falar. O sujeito que saiu estava muito nervoso." disse a máquina.

"Certo certo...", o doutor limpou o suar de sua testa, "então .. o que é que você quer?"

"Saber se você está bem senhor."

"Por favor me deixe em paz." suplicou o doutor.

"E os outros pacientes?"

"Deixem eles esperando, vá comprar algumas revistas novas." sugeriu o doutor.

V

Que trabalho horrível, pensa o doutor. Apenas degenerados aparecem para consulta, todos os dias histórias desagradáveis, infecções nojentas e cheques sem fundo. Que incentivo existe para querer trabalhar com a saúde pública? "Que merda", pensa o doutor, ao beber mais uma dose de seu conhaque favorito. Pensa nos pacientes que esperam na sala abafada, sem ventilador ou ar-condicionado, suando bicas antes de seus exames de coração. O calor abaixando a pressão dos hipocondríacos, um ambiente de intercâmbio de víroses. "Porque eles vem até mim? Detesto o meu trabalho."

O doutor sai pela porta dos fundos diretamente para os corredores do hospital, longe de sua secretária e seus pacientes. Entra no banheiro e se lembra de quando começou a trabalhar, quando tinha uma licença médica expedida pelo Instituto Médico de Araripina do Oeste, que lhe dava permissão para praticar medicina, mas apenas em lavatórios dos hospitais do Recife. "Bons tempos" pensa o doutor lembrando-se de situações interessantes, como a vez que um jovem apareceu com um profundo furo que chegara ao pulmão. Urinando, se lembrou:

"Rápido minha gente, ele precisa de uma intervenção urgente. Doutor Toledo, por favor faça um corte em seu peito. Enfermeira, me traga uma colher de sopa, precisaremos fazer uma lobectomia." O doutor se mantinha calmo e, recebendo a colher, enfia ela dentro da privada para limpá-la.

"Doutor, não deverias esterilizar a colher?" Pergunta a enfermeira.

"Provavelmente," responde o doutor, "mas não temos tempo para isso".

"Doutor, o corte está feito." avisa Toledo.

"Então seja o que deus quiser." Doutor Macedo enfia a colher dentro do corte, entrando em contato com o tecido pulmonar do paciente. Mexe bastante, atrás de algo que apenas o doutor sabia o que era. O sangue jorrava para todos os lados, na enfermeira, no espelho, nas paredes do lavabo, nos olhos do doutor. "Doutor Toledo, por favor, ponha pressão em seu estômago." E ele seguia as instruções, fazendo cada vez mais sangue jorrar.

"Doutor, não achas que deveríamos anestesiar o paciente? Quem sabe um pouco de morfina?" Sugeriu a enfermeira.

"Acabou o estoque, o vigia da noite tomou tudo para ver qual era a onda...não pare! empurre mais forte."

Após alguns minutos de sangue por todo o lado, o doutor finalmente retira do pulmão um tumor do tamanho de uma cereja. "Achei!"

As máquinas apitam, o batimento cardíaco do paciente para.
"Doutor, ele se foi."

"O trabalho está cada vez mais difícil", lamenta o doutor. Ele vai ao seu gabinete de licor. "Que merda! Tem alguém roubando minha bebida! Esses jovens de hoje em dia estão fora de controle.”

O doutor termina de mijar e ri de sua lembrança. Ele vai à pia para lavar as mãos e se olha no espelho. Cada dia mais velho, rugas de um velho chato, olhos de um velho sem esperança, cabelo de um velho indiferente, dentes de um velho boêmio. Velho desiludido que nunca foi amado, criando fantasias para justificar a inércia de seu coração. Joga água no rosto e volta para os corredores do hospital.

VI

Andando de volta para seu consultório, doutor Macedo dá de olho com uma jovem e bela enfermeira que sempre evita o seu olhar. Deise é o nome dela, o alvo do amor incondicional e doentio de Macedo, a destinatária de suas cartas de amor... ao se cruzarem, o doutor fala "Deise, da próxima vez me traga uma foto 3x4 para eu colocar na minha carteira", mas a enfermeira continua andando, fingindo que o comentário não tinha sido destinado a ela.

O velho vai para seu consultório e, sentado, abre a gaveta, retira um pedaço de papel e começa a escrever mais uma carta.
Ele se serve de conhaque e continua.
Muito honesto, tem que fazer ela se sentir importante.
Ela nasceu para o doutor, porque ela não percebe o que eles têm?
Pondo o ponto final na carte, o velho se serve de uma outra dose de conhaque e, acendendo um cigarro, suspira satisfeito.

VII

O problema não é o amor, mas sim a forma em que nos amamos. Assistimos aos melhores momentos da paixão perfeita na televisão, acompanhada da trilha sonora de um romântico tesão, e sem pensar a respeito, criamos as expectativas que corroem nossos sentimentos reais. O velho amava, mas era um doente. O velho via em sua musa alguém que poderia o fazer melhor, e sem respeito às suas vontades, se aproximara vulgarmente. Não deixara de acreditar no amor, mesmo com constantes manifestações de repulsa.

"Mas dessa vez será diferente," pensa o velho.
A jovem era casada, e acreditem, nada indicava que ela teria algum interesse no nosso doutor. Os anjos e diabos de seus ombros viriam a conversar sobre a situação, mas antes o velho se lembrava do primeiro encontro com Deise.

Perambulava pelos corredores com um café na mão. O velho, cinco anos mais jovem, pensava apenas em retornar ao seu consultório. Tinha tomado uma pílula recomendada por um paciente e se sentia bem. Passando pela sala de cirurgia, Doutor Costa, um doutor experiente, pede a presença de Macedo na operação. Doutor Macedo, afetado, porém consciente de suas responsabilidades, entra na sala e coloca o vestuário apropriado. Doutor Costa, Doutor Gonçalvez e a enfermeira mais linda já vista pelo velho doutor estavam presentes.
"Doutor Macedo, preciso que você colabore com a enfermeira e a ajude com os equipamentos." Ordenou Doutor Costa.
"Sim, claro, mas é claro." Respondeu o intoxicado doutor.

A operação era simples, apenas uma intervenção contra um aneurismo na aeorta da paciente, uma velha inconsciente com uma cara de quem estaria pedindo para morrer. A enfermeira era linda, e pediu que o doutor colaborasse e passasse a ela os instrumentos de trabalho. O doutor alegremente aceitou tudo que lhe foi dito.
"Bisturi", pediu a enfermeira.
O doutor pega o bisturi e passa para a enfermeira, que passa para o doutor Costa.
"Navalha", pediu a enfermeira.
O doutor pega a navalha e passa para a enfermeira, que passa para o doutor Costa.
"Dilatador", pediu a enfermeira.
O doutor pega o dilatador e passa para a enfermeira, que passa para o doutor Costa.

"Como estou ajudando?" o velho se perguntava, deliciosamente distraido pelas frases tenras da enfermeira.

"Agrafo cirúrgico", pediu a linda enfermeira Deise.
"Não sei o que é isso querida," responde o doutor.

A jovem aproxima-se da mesa e pega o instrumento dizendo, "isso é um agrafo, seu bobo."
A partir desse dia, o doutor nunca mais se esqueceria da imagem dos olhos profundos de sua querida Deise fixados nos seus enquanto ela comentava sobre sua incompetência.

A cirurgia parece correr bem. Doutor Costa trabalha concentrado junto com o doutor Gonçalvez. Deise se aproxima dos aparelhos para anotar leituras e pede para o doutor pegar o gastroscópio da paciente.
Nosso doutor, sem pensar duas vezes, chega junto de Deise e cochicha em seu ouvido, “que tal brincarmos de adivinhação? Você senta na minha cara e eu tento adivinhar o teu peso".
Desde então nada prometera acontecer entre os dois.

O doutor olha para o teto ao se lembrar do encontro, dá um trago de seu cigarro e pensa na carta que acabar de escrever. "Desta vez ela perceberá o quanto a amo". O velho se apaixonou ao escrever esta carta, mesmo sabendo que um dia mandaria a mesma para uma outra qualquer. Ele se apaixonou pela sua capacidade de amar. Tinha várias pretendentes e tentaria a sorte com todas, pois o amor é reciclável. Mandaria para uma de suas damas ou uma de suas putas talvez.

Sentado em sua embriagez, a cabeça descansa na parede enquanto a fila não para de crescer.

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Guilherme Rocha

4 comentários:

Anônimo disse...

texto meio grande pra esse blog...
uia!

Anônimo disse...

Nossa, lembrei pra caralho do Dr.Benway do Burroughs!

muito bom man, muito bom mesmo. gostei dos caítulos que terminam com um parágrafo rimado.

to com uma inveja boa da porra!
hehehe

Vitor Souza disse...

Guilherme, parabéns! Que conto!

Escrivinhações do Feuser disse...

Representa muito bem a saúde brasileira. Muito bem escrito e inteligível. Gostei do doutor.