segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Prelúdio

Nico...como era mesmo seu nome? O papel de uma brancura impecável agigantava-se sob seus olhos. Subescrito, sob uma linha tênue, seu santo ofício, seu crachá, sua existência: Sumo Pontífice. Naquela tarde toda a humanidade suava. Suava em suas gotas grossas que escorriam da testa. Cabelos grisalhos, achatados pela auréola branca. Como a dos judeus, mas branca. Não preta. Um documento poderia mudar o curso da humanidade? Talvez sim. Talvez. Era a vontade de deus. Ou do concílio. A fé em dúvida... Melhor assinar e pronto. Pena, tinteiro e rubrica. Consumado está. Como deus disse, e alguém escreveu dizendo que o disse. Política, pensamento perigoso nessa posição. Não era travestido, precisava acreditar na divindade de suas atribuições. Política.

- Cardeal, toque o sino. Consumado está.

A contra gosto o cardeal recolheu o papel e deu as ordens a outro, que daria a outro e a outro. Até o homem do sino. Homem sacro, mas homem do sino. Soava o sino, e nisso estava sua divindade. Minutos se passaram, horas, dias. Soou. A multidão comemorava à frente do palácio. Jovens. Revolucionários. Partidários da revolução carismática. Os filhos bastardos de Lutero, eles venceram. Era a sina, o preço. Não. Política. Perigoso. Era a vontade de deus. Ouvia os gritos e suava. Teria que pronunciar a todos. Era de sua inteira responsabilidade. Ergueu seu caduceu (era egípcio?). Caminhou lentamente, passos esclerosados, passos de um santo:

- Irmãos e irmãs de fé, consumado está. É a vontade de nosso senhor Jesus Cristo, corpo de deus, o deus encarnado. Comemoremos irmãos.

Acenou brevemente. Fez o sinal da cruz e retirou-se. Consumado estava. O que haveria de ser, ao senhor haveria de saber. Sentiu-se leve, descansado. Teria algumas horas antes dos trâmites, e dos ecos. E, principalmente, dos protestos. Mas o mundo mover-se-ia ao favor do documento, um basta nos escândalos. Imaginou a multidão que se alistaria ao novo regime. Esvaziariam as riquezas do vaticano, agora desprotegida. Não haveria cisma, consolava-se. Todos acordaram que não havia outra solução. Era isso, ou o fim. Fim dos dízimos, fim da ordem, fim do poder, fim de tudo. Não seria melhor assim? Política... Deitou-se em sua cama barroca adornada de anjos dourados a sustentá-la. As ruas do paraíso eram douradas, mas eram os anjos? Não iria dormir, e não queria mais pensar. Algumas horas, repouso. Já que a profanação está feita, culpo-me menos. Comprimido azul e sono, sono sem sonhos, desejo proibido. Benzeu sua própria água, por rito, porque ainda era a mesma de antes. Comprimido azul. Pequeno. Azul. Comprimido. Mido. Midas. Ruas de ouro. Ou-ro...ou. Adormeceu.

Manchete do dia. Plantão simultâneo de todos os jornais do mundo. Rádios, TV, boca a boca e pombos correio: aos padres, recém consagrados, é permitido a partir do dia de hoje, o sagrado matrimônio, para que dividam com a santa igreja, com conhecimento de causa, a santidade de um encontro de almas onde um só corpo se faz, sob os olhos agudos de deus.

Isqueiro branco. Velho e gasto, isqueiro. Ainda acendia com presteza. Colado a ele, havia um selo de qualidade. Sempre raspo o selo de qualidade. Gosto de sentir a colinha que o emplasta, e deixa-o mais branco. Cricket. Não é um jogo com bola? Não me interessa. Existem perguntas suscitadas por objetos que não tem a menor importância. E nas quais não se gasta um minuto de pensamento, afinal, não interessam. São automáticas. Ainda assim, são feitas com uma regularidade abusiva. E o texto? Releio? A linguagem ta um tanto rebuscada. Cuidado com os clichês, pode não ser atraente. A literatura anda gasta, e você não. É novo e jovem: o futuro, a vanguarda. Rebuscado? Não interessa. Pergunta automática. Falta pouco para sair. Dormir um pouco é boa idéia. O dia será péssimo e o sol já está a pino, merda. Votarei ao texto. Depois, quem sabe...

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Mateus Souza

domingo, 4 de novembro de 2007

Mindinho

Entraram em um bar como amigos, objetivo? Mentir! Em voz alta.
-Amor...
-Fala
-Tu sabes que te amo, né? Mesmo com tua polidactilia, mesmo vendo que esse seu sexto dedinho da mão é bizarro...
-Bizarro, sei... Mas não reclama quando no teu eu o ponho!
-Por isso te amo... Divago aqui comigo que o bizarro é a fina flor do sexo. Viveria sem esse teu pau ai, mas sem o dedinho...
-Meu medo é esse... Acordar sem ele, sangrando em tuas mãos.... Não sei como me excitaria, que o sangue seria bom de ver....Ah, meu dedinho talvez ereto ficasse
-É nisso que tenho pensado, na verdade, é...podes fechar os olhos por um minuto? É preciso. É surpresa, vais gostar...
-Hmmmmm..... Tentarei, pelo amor que por ti sinto. Olhos fechados, Cadê?
Ela tremeu nos mil ensaios que fizera em casa, mas naquela hora, possuída pelo desejo, foi cirúrgica. Pegou o bisturi do bolso, roubado com cuidado, viu as mãos estendidas na mesa e ele, o desejo, o dedinho. Não sentiu, ele só pulsou e pendeu fora da mão. Caiu por sobre um paninho encardido de bar, sangue, sangue.
-Sabe que nem doeu?.... Queria de novo, e de novo, e de novo..... Olha aquele casal com cara de nojo....Vou embrulhá-lo num papel de pão e dar pra eles dois.... Baita vibrador será! Faremos alguém feliz essa noite amor, muito obrigado!
Ela pensou que o anestésico fez efeito. Mas que reação do cara! Que puto! Tirou todo o encanto sádico do seu desejo. Gritou se retirando do bar:
- SEU PUTO! VAI DAR O DEDO É? ENTÃO ENFIA NO CU QUE TE ODEIO!
Finalmente, ele pensou.
Sem despedidas, foram embora. A verdade é que não houve mentira, se odiavam mesmo e a querela toda foi resolvida. Com um dedo. Um dedo a menos, diga-se.

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Mateus Souza e Helena Hutz