quarta-feira, 28 de março de 2007

CARTA DO ÚLTIMO ATO

Sabe aquela paz? Aquela, que você só encontra quando pega seu carro, toma a BR-101 até o município de Casemiro de Abreu, dobra à esquerda no trevo da rodoviária, depois à direita, à esquerda novamente, sacolejando 30 km por estreita estrada de terra até chegar ao último distrito de Macaé? Sabe? Se não sabe, experimente um dia. E melhor: faça como eu fiz, que descendo no arraial, tomei a pé o rumo das primeiras cachoeiras, subindo por quatro horas até o cume de 1400 metros, onde existe aquela pedra grande, com uma outra menor, incrivelmente equilibrada em cima da maior.

Seria meu último ato estar naquele lugar onde o litoral pode ser visto, e onde me vi cercado pelo Rio Macaé ao sul, pelo município de Macaé ao norte, por Casemiro de Abreu a leste, e por Trajano de Moraes e Nova Friburgo a oeste, esperando — talvez — um milagre que me impedisse de fazer o que lá fui fazer. A vida não mais valia a pena, ela se fora, perdi qualquer propósito, qualquer esperança e vocês sabem, sem esperança não dá.

Não, eu não estava sofrendo por amor não. Até estava, mas o fato é que ela não me deixou para ficar com outro ou porque se cansou de mim, mas porque lhe aconteceu o que ocorre com todas as pessoas boas que "caem" neste mundo: "a vida continua", "bola pra frente", "ela se foi, mas você está vivo”. Esse último argumento era o mais duro de ouvir!

Enfim, tentei levar a vida, depois de quase morrer de inanição, retomando o trabalho, os antigos projetos que esboçamos juntos, mas não deu: não tinha como continuar vivendo!

Seis meses se passaram, um ano, mais seis meses e nada: Nada da antiga alegria, do entusiasmo pela vida, da serenidade aprendida e praticada. Nada dessas coisas que amenizam a carga de ser homem. Então lembrei daquele lugar, onde fôramos juntos pela primeira vez e onde retornamos muitas vezes, com nossas mochilas, nossas lanternas, nossa barraca. Bom, se era para acabar com minha vida, extenuando a dor, tinha de ser lá. Eu sempre tive dessas coisas, tomar a decisão certa de forma inconsciente, mas olhem, daquela vez o destino jogou duro comigo. Foi assim, de repente:

— E aí, camarada? Tem um cigarrinho careta?

Quase vomitei pelo susto. Foi uma questão de instantes. Estava sozinho naquela imensidão dourada e eis que surge aquele cara, saído não se sabe de onde, sentado ao meu lado, pedindo cigarro.

— Tenho sim. — respondi, controlando o pânico, e estendi lentamente o maço inteiro para ele.

— Pra falar a verdade, não quero seu cigarro não. — disse rindo. - É que você não deve subir aqui sem guia. Sabe "qualé": é perigoso...

— Não ligo. — respondi expelindo o máximo de ranço que pude reunir. Afinal, aquele projeto de hippie, tatuado, com um cabelo comprido-imundo, calça rasgada e mais suja do que um pano de chão, estava obstando o meu grande plano de morrer em paz.

— Pois devia ligar, cara. Devia ligar. — seu sorriso era quase sarcástico.

— E posso saber por quê? — perguntei colérico.

— Ué!? Simples pô! — ele passou a mão pelo cabelo e colocou um tufo de fios encaracolados por trás da orelha direita:

— Porque a vida é beeeeeela... — e se deixou cair para trás, braços abertos, com uma cara de idiota, realçada por um sorriso ridículo. Desconfiei de que aquele sujeito tivesse "fumado" o Pico do Peito do Pombo inteiro.

— Sabe de uma coisa, "bicho”? — disse-lhe, procurando imitar o seu modo de falar. — Vou indo! "Inté" para você. Vou procurar paz em outra freguesia...

Levantei e comecei a catar minhas coisas, guardando cuidadosamente a seringa. Ele continuou deitado, apontando para algumas nuvens, com aquela mesma cara de imbecil. Por fim disse:

— Tu já vais? É cedo! Toma mais um copo! — ergueu-se pelos cotovelos, deu de ombros e amealhou: — Mas se já vais, desculpe qualquer coisa.

— Tudo bem, a culpa não é sua. Aliás, não é de ninguém...

— Vê se desce com calminha, camarada. Sem pressa, valeu?

— Tá bom. — minha raiva havia milagrosamente passado e eu já estava quase gostando dele — E vê se não demora pra descer, você também. Daqui a seis horas vai começar a escurecer. — recomendei-lhe.

Ele nada respondeu. Apenas se colocou de pé, caminhou para uma pedra arredondada, subiu-a, e ficou com as mãos para trás, olhando o horizonte. Parecia estar falando alguma coisa, mas não se podia ouvir o que era.

Peguei minha mochila, localizei a trilha por onde vim e dei exatamente 15 passos naquela direção, quando ele gritou:

— Augusto!

Virei a cabeça totalmente aturdido pelo hippie ter dito meu nome. Senti uma pontada de mau-jeito no pescoço.

— Deus te ama!

Fiquei tão confuso, que só consegui exprimir meio sorriso, numa concordância polida: "Deus te ama".

Dei-lhe as costas pela última vez e desci a elevação a passos rápidos, com o coração disparado e um arrepio gelado ao longo da espinha.

Vitor Souza

(Texto publicado no livro "Rio de Janeiro, uma crônica a cada dia", editora Litteris - RJ, 2003)

4 comentários:

Escrivinhações do Feuser disse...

O hiponga era um anjo da natureza, e evitando que alguém morresse num lugar lindo.
Gosto das descrições de teus textos Vítor. Muito bom.

. disse...

Amei esse texto vitor ... ele é leve porém intenso ... me passou uma sensação muito boa
parabéns

Anônimo disse...

Vitinho!!!!!!!!!!!

Mergulhei no texto, ele é como um imã que vai te atraindo a cada palavra seguida!
Fui sugada pelo seu texto!
Comecei ele com um sorriso de perceber a magnitude daquele lugar que também conheço!
Depois do segundo parágrafo as lágrimas escorriam do meu rosto com toda intensidade que eu pude captar...
No diálogo com o hippie, minhas emoções passaram da agonia e lágrimas para risadas e felicidade!
No final lágrimas novamente!

Espetacular esse texto Vitor!!!
Parabéns!!!

Unknown disse...

Vitinho!!!!!!!!!!!

Mergulhei no texto, ele é como um imã que vai te atraindo a cada palavra seguida!
Fui sugada pelo seu texto!
Comecei ele com um sorriso de perceber a magnitude daquele lugar que também conheço!
Depois do segundo parágrafo as lágrimas escorriam do meu rosto com toda intensidade que eu pude captar...
No diálogo com o hippie, minhas emoções passaram da agonia e lágrimas para risadas e felicidade!
No final lágrimas novamente!

Espetacular esse texto Vitor!!!
Parabéns!!!