segunda-feira, 30 de julho de 2007

PARALELOS

Tudo a sua volta — negro! Imerso em abrupta escuridão, o lugar era frio e o clima “carregado”. Por mais que olhasse em todas as direções, não conseguia distinguir formas, não conseguia perceber cores. E o silêncio tornava aquele limbo ainda mais assustador.

Mas instantes atrás ele viu monstros. Ou eram pessoas? Deformados, ruins, queriam maltratá-lo. José nunca sentiu tanto medo em sua vida! Mas ele merecia aquilo? Foi tão mal assim? Viveu realmente de forma tão deplorável para não ter paz mesmo depois de morto?

Ele quis morrer, é certo: entregou-se à bebida desde o início da sua juventude; ao cigarro; às drogas, às prostitutas; não foi um bom pai; não foi um bom marido — reconhecia tudo isso — mas depois não tentou mudar? Aliás, não tentou mudar tantas vezes que perdeu a conta? Não fez mal somente a si próprio, sendo ele mesmo, o principal alvo de suas loucuras e inconseqüências? Então por quê o inferno? Aqueles homens deformados, batendo-lhe... Estava nu. No frio. Sem dormir três dias seguidos. E isso, para não falar das outras humilhações a que tinha sido submetido, fortes demais para que José não chorasse, pedindo por sua mãe morta há muitos anos.

Mas ali, um novo jogo, revelado após o fim do breu: A sua frente, uma bancada de madeira iluminada por uma pequena vela e, em cima da mesa, por menos que combinasse com o cenário a sua volta e por tudo que viveu nas últimas semanas, vários dispositivos eletrônicos, artefatos eletro-mecânicos, baterias portáteis e telas de cristal líquido. Disseram que se ele tivesse inteligência para resolver o problema, montando o quebra cabeça, sairia dali, poderia ir para um lugar um pouco melhor, onde os castigos seriam mais brandos. O velho com o corpo cheio de chagas lambeu uma das feridas e lançou-lhe um olhar lascivo, antes de dar essa última instrução e desaparecer lentamente dali. Contudo, várias horas se passaram (ou o que pareceu várias horas) e José não conseguiu qualquer progresso. Nem seus conhecimentos em eletrônica e mecânica, adquiridos em vida, prestavam naquele momento.

Estava desesperado com a possibilidade real de novas torturas: a cabeça doía, seu corpo tremia de medo e frio, José urinava sem controle. Seu choro virou um soluço descompassado, sem lágrimas, com uma sensação de dor nos músculos do rosto. Eles voltariam e o problema não estaria resolvido. Queria desistir. Estava realmente disposto a desistir...

“Não”.

Uma voz, dentro da sua cabeça, uma voz.

“Não, tio, não desista não”.

Primeiro ele achou ser aquele clamor o de criança. Mas quando escutou pela terceira vez, grande alegria tomou conta de si...

“Vim te ajudar, tio. O senhor precisa desfazer essa ilusão”.

José voltou-se intuitivamente para uma direção qualquer e, parado ao seu lado, sorrindo-lhe, um rapaz alto, boa estatura, trajando roupas simples e surradas, com uma manta na mão. José sabia que o conhecia, que ele lhe era familiar e estava ali para ajudar. Mas quem seria?

— O senhor não quer admitir que já me reconheceu. Tudo bem. Não faz diferença! Toma, tio, vista a manta... Está frio demais aqui!

O rapaz pousou o cobertor em suas costas magras e deu dois tapinhas calorosos em seus ombros.

— Vou te ajudar, tio. Vamos montar logo esse computador!

Nas horas que se seguiram, o rapaz lhe forneceu instruções precisas sobre o funcionamento dos dispositivos de controle, de interfaceamento, de processamento e armazenamento daquela estranha máquina. José não sentiu dificuldade em encaixar tudo aquilo nos seus optativos lugares, fazendo o aparelho projetar caracteres num idioma desconhecido, de forma síncrona, por seus três monitores de cristal líquido.

— Viu tio? Está funcionando. Agora o senhor precisa acreditar que tudo isso é uma ilusão.

José se fixou nos olhos do rapaz e admitiu o que estava com medo de reconhecer desde o início do encontro. Com ar de tristeza, lamentou:

— Você cresceu. Quando deixei a vida, você tinha um ano de idade. Sua mãe estava grávida de novo. Você é o meu sobrinho que eu via tão pouco, mas que me sorria do berço e me encarava por longo tempo, como que me dizendo alguma coisa. Eu devo mesmo ter passado muito tempo neste inferno...

— Tio, eles são fantasmas. Pouco do que existe aqui é de verdade. Mas o senhor não sabe distinguir a ilusão. Lá no mundo, eu ainda tenho um ano de idade. É difícil entender, eu sei, mas quero que o senhor se convença de que passou poucos dias aqui. Sua morte foi recente e as pessoas ainda estão sofrendo muito por isso. Mas o senhor viveu seus dias acreditando que era mau, e que quando chegasse a “sua hora”, viria direto para o inferno. Bom, aqui está: O senhor construiu um inferno bastante interessante, tio.

— Posso sair?! Mas como? Como?
— Pode sim! Quando percebi que o senhor se deu uma chance de enxergar a verdade, e isso aconteceu na forma deste absurdo quebra cabeça, vi que era hora de interferir e te ajudar a sair dessa ilusão.

— Isso tudo é muito confuso...

— Não é, não. No fundo, o senhor sabe o que fazer. Projetou com suas crenças esse cenário todo aqui, os acontecimentos dos últimos dias, as torturas, os monstros, o frio. Acorde tio, acorde para a verdade. Existem pessoas que querem te ajudar, fazer o senhor perceber a realidade...

O rapaz fechou os olhos, pousou sua mão esquerda sobre a fronte do sofrido e esquálido homem, e com musculatura rígida e voz elevada, exortou, num tom de pregação:

— A verdade tio, “não é o que os seus olhos te mostram”. Sinta essas palavras com o coração, e o real virá!

José começou a sentir náuseas, sua cabeça doía, suas pernas pareciam não sustentar o peso do corpo, percebeu que iria desmaiar...

— O senhor precisa se manter acordado. Repita comigo: “tudo isso é uma ilusão”!

José se sentia ridículo pronunciando tal frase, mas o faz mesmo assim. Várias vezes.

— É uma ilusão, — sua voz saia embargada — tudo isso é uma ilusão, ilusão, quero sair dessa mentira, quero ver a luz!

O rapaz sorriu ao ver seu amigo assumindo-se, comandando sua própria libertação.

— Continue tio, com o coração, está dando certo!

— Ilusão, ilusão, ilusão... EU QUERO A VERDADE! A VERDADE! NÃO SOU MAU! NÃO MEREÇO A DOR! NÃO MEREÇO A DOR! NÃO MEREÇO A D...

Uma explosão. Silenciosa. De luz. Muita luz. Calor. A sensação de estar se movendo para cima numa velocidade perigosa. Vento. Depois a parada suave. Seu sobrinho segurando sua mão. Um globo brilhante. O calor no rosto. O globo é o sol. O calor no corpo. Cheiro de grama. Grama sob seus pés descalços. Um parque. Muitas árvores. José fechou os olhos e caiu. Sentiu que o rapaz deitou seu corpo e apoiou sua cabeça antes que ela batesse no chão.

— Durma tio, durma. Ficarei aqui com o senhor. Foi muito esforço...

Sua voz era calma e transmitia segurança. José se entregou ao sono. Mas antes de perder a consciência, escutou uma voz de mulher perguntando sobre como ele estava. O rapaz respondeu a ela algo que tranqüilizou José ainda mais. Então ele dormiu mesmo.

Quando acordou, estava vestido com um tipo de avental de cor branca. Mangueiras finas com agulhas nas pontas espetavam seu corpo em várias partes. Telas de cristal líquido mostravam num tom esverdeado linhas onduladas, seguidas de bipes contínuos, que eram representações dos sinais vitais de José. Seu sobrinho segurava um estetoscópio com uma das mãos. Com a outra, verificava informações rabiscadas numa caligrafia desleixada em uma ficha amarela presa a uma prancheta transparente.

— Agora que o senhor acordou, já posso ir. Eles vão cuidar de você. Meu trabalho aqui acabou.

— Onde estou?

— Onde o senhor acha que está?

— Eu não lembro o que aconteceu.

— Vai lembrar.

— Carlos?

— Sim, tio...

— Devo te agradecer.

— Não por isso.

— Me faça mais um favor?

— Fale.

— Diga a eles que eu estou bem.

— Não posso fazer isso.

— Por que, não?

— O senhor não tem mais ninguém, lembra? Agora realmente preciso ir. Descanse e fique com a tua consciência, tio.

Vitor Souza

segunda-feira, 16 de julho de 2007

um momento...

A chuva caiu sem avisar, como um sorriso que some depois de uma péssima surpresa. Apalpei minha bolsa e pude sentir a água estuprando meus poemas e a firmeza da garrafa de uísque que comprei ontem e que tem de durar mais um dia pelo menos. Passo pela praça central como quem tem um punhal enfiado nas costas, me lembro do banheiro público que deve estar vazio. Entro e escolho um reservado, me sento no vaso e limpo com a barra da camisa as lentes dos óculos que estão salpicadas pela chuva. Ouço passos apressados como os meus e um solavanco na porta do reservado que estou. O golpe é forte e acerta em cheio meu rosto. Caio com sangue pela barba; " Meu nariz quebrado de novo" penso eu,masnão era. Apenas um cortezinho no supercílio esquerdo. Um zumbido também. "Filho da puta" digo me erguendo com dificuldade pela dor, pela surpresa e pelo espaço que não é muito. dou de cara com um garoto mais assustado que eu. Em pé, frente a frente, vejo que ele é pequeno e treme. "Desulpe moço, mas se eu não corro a polícia me pega." "O que foi que você aprontou?" "Estava acendendo um baseado ali perto da fonte, coisa pequena, Só a ponta. Por favor não me entrega não." Nem havia pensado nessa possibilidade "Quantos anos você tem?" "Quinze" "Você é louco? Ficar fumando isso durante o dia? E ainda mais debaixo de chuva, por que não veio para cá antes? Aqui é um sossego só." Ainda me lembrava da festa que havíamos promovido neste mesmo banheiro oito anos antes, eu, The Killer, Baby Face, Cajú, Samy Love e mais alguns... ficamos tocando violão, e papeando até o guarda aparecer e nos botar pra fora por que havia uma garota no banheiro masculino. Anos depois tinha tomado um tremendo porre enquanto apresentava um show de poesia no espaço cultural de onde o banheiro fazia parte e tido um revival com uma jovem ex-namorada. Bons tempos... " Nem pensei nisso. Quer dar um tapa?" "Não, valeu... não fumo." "AHHHHHHHHH VOCÊ NÃO FUMA? JUSTO VOCÊ??? " "Nem sempre os loucos são fabricados. Alguns nascem brisados. Eu bebo, por exemplo." "Sempre achei que tu fumava. Meu irmão lê algumas coisas que você escreve e sempre me disse que você deveria ser o maior maconheiro da cidade." "Bem a cidade nem é tão grande assim. Mas meu lance é sentir o uísque descendo pela garganta. Me reconforta" "De qualquer forma, valeu por não criar caso." "Meu filho cada um é livre pra seguir seu caminho." A chuva lá fora pareceu convidá-lo com mais força, da mesma forma que chegou partiu. Voltei ao reservado mas dessa vez mantive a porta aberta, abaixei as calças, acendi um cigarro pra mim, destarrachei a tampa e tomei um trago saboroso do meu uísque vagabundo. O mundo poderia acabar agora mesmo...

Jim d.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

estréia de JIM D.

"vou me afastar sem você saber, sem você notar e quando eu estiver longe você irá me procurar e mesmo que tenha que omitir sua vida, saberá nobres notícias sobre meu lastimável e doce paradeiro/ eu vou me fixar nos seus olhos e vou atrofiar os seus músculos, você vai me sentir na derme pura até engasgar a minha saliva, mas não vou aparar suas garras, agora não." Gabriela Carpi

teus olhos me soam como Billie Hollyday um jazz cheio de bourbon e meia-noite.. Camel, Hollywood, Lucky Strikes são apenas um maravilhoso passatempo tudo se esvai em filtros e ficamos assim sorrindo entre cinco minutos de prazer e paz E quando eu ando entre os livros piso , desastrado nos solos de Chet Baker e chego blues caminhando em um jardim separado de tudo apenas a tinta com que consagro meus instantes marcando o destino já conhecido. Sempre volto ao lugar onde parti a primeira vez. Não por saudades mas por vontade de partir de novo. Estamos a postos comecem a celebração, vejam as cadentes estrelas tudo e pausa slow motion... Nós partiremos juntos



Às vezes a gente fica procurando estrelas
Perdido num ponto qualquer da cidade
Querendo apenas mais um momento de paz.
Estranhos passos nos levam em direção da forca
Seremos vítimas sempre.
Ela se aproxima com um punhal afiado
Sorrindo como a esperança
Calma como o amanhecer,
Seus cabelos castanhos desenham o adeus,
Mãos bailam pelo corte do punhal
Uma gota vermelha como uma rosa surge
Em seus dedos, pequenos como a culpa.
Acaricia o rosto da morte com devoção
E aguarda seu beijo libertador
Os olhos procuram um ponto de fuga
A realidade penetra os sonhos
E sofrem os anjos que caminham desinibidos
Pelo deserto da alma

Jim d.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Pé na Estrada Nelson Rodriguiano

Entre um pigarrear e outro ele abria-se resoluto:

- Meu bem, tenho que ir-me. Não quero que entendas, somente que aceite. Sabes que te amo, e como te amo, mas amor maior tenho pela minha alma, e essa pede que eu vá, essa, com pernas a ditar-lhe, avisa ao corpo que os pés já estão de partida. É o tornar-me quem sou, é o caminho das minhas pedras, meu on the road...

Já acostumada ao lirismo do seu pequeno, com longas e intermináveis oratórias repletas de conteúdos e autores, ela olhava-o sem muito espanto. Sabia que o destino do moço era andar, e seu sexto sentido já havia avisado-a da proximidade do evento. Portadora de uma alma ciumenta, mas de nobreza inigualável, contorcia todos os músculos de seu corpo de bailarina a forçarem-se em expressão de compreensão e apoio.

- Chuchu, sabes que também te amo. Sabes como te quero por perto, mas te quero feliz. Quero que este brilho nos teus olhos corra o mundo e volte para a sua estrela bailarina. Vai em busca do teu sorriso, vai, não tarda a voltar assim que encontrá-lo. Não se despeça mais, até a volta...

Espantado com o coração da mocinha, sorriu-lhe o seu sorriso de procura e saudou-a já caminhando de costas em direção à porta, “até a volta, meu amor”.

Partiu assim, em despedida alegre. Despedida com feições de reencontro, seu reencontro. O céu arrumou-se para preparar espaço para sua mais nova estrela. Como foram seus ídolos, foi a mão ao bolso em busca de uns cigarros, os companheiros mais assíduos dos viajantes literatos e sem novos hábitos a inovar; acendeu o cigarro e andou até a estação de espera do ônibus destino. Sua grande mochila serviu-lhe de encosto na longa espera, feita longa pelos seus recém completados 24 anos a sonhar...

A lotação norte varria o asfalto possuída naquela noite branca. Sua rota tranqüila foi interrompida por um sujeito traído e cruel que tomou o ônibus de assalto com vistas de atropelar a mulher e o dito cujo no bar nordeste. Com cano em cabeça, o condutor era proibido de frear. Inútil e previsto dizer que, aterrorizado e ensebado de suor, mal viu a ponta de um cigarro recostado em uma sacola. Sentiu mais o estalar de ossos por sob as rodas.

Morreu ali, seus sonhos inscritos no asfalto com excremento e sangue.
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Mateus Souza