sexta-feira, 9 de março de 2007

Cronos e Réia



I

No décimo quarto dia do segundo mês, Deus, em sua onipotência, resolveu fazer uma cesta para refletir. Após um minuto de infinito, decidiu que seu acordo com os homens sobre não destruir a terra com água expirara, e retirou o único arco-íris que coloria um céu distante naquela tarde do dia segundo.

Pepo, parado no ponto de ônibus, fumava um cigarro sorridente. Mesmo ensopado daquela chuva intrometida de dias de sol, sorria com o seu cheque salarial de quatrocentos e quarenta e seis rúpis no bolso. Naquela tarde escurecida pelas nuvens, indícios do parecer divino já se apresentavam misteriosamente. Há uma hora esperando, pepo foi abordado por um vagabundo de luxo: vestia um resto de terno com um meio cinto social e uma bermuda encardida e suja. Pediu-lhe um cigarro. Coisa normal entre os vagabundos da cidade, à exceção de que este falava inglês e segurava um maço de revistas de negócios. Pepo, curiosamente, não se deteve no refinamento do vagabundo e ainda trocou duas palavras em inglês oferecendo-lhe dois cigarros, um para mais tarde. Curioso mesmo foi ver o velho Rildo assobiando por entre os guarda-chuvas revoltosos. Parecia não se incomodar com o caos da cidade, e embicava uma cantiga em uchinaguchi, língua de seus ancestrais okinawenses. Aquele sim era um homem curioso do qual pepo nunca esquecera. Não teve coragem de abordá-lo, apenas deteve-se a caminhar um pouco atrás dele por entre as notas orquestralmente assobiadas, até se perder por entre árvores gotejantes.

Trepou numa árvore para ver mais adiante. Alcançou o último galho - daquela altura os pingos pareciam mais grossos. Uma fabulosa vista de sombreiros abertos como um tapete negro de pontinhas prateadas. Pares de vaga-lumes gigantes iluminando as ruas em uma fila interminável de carros, um velho tremendo de frio ,gentilmente acudido por uma índia que ofereceu-lhe abrigo em sua metade de guarda-chuva, um menino gordo abraçava a mãe cansada e pensativa, uma pedinte invadia ônibus executivos implorando por trocados para comprar um isopor, uma vez que as cervejas para o carnaval seriam doadas a ela pela paróquia (uma estória interminável), um senhor grisalho acenava para cada táxi que passava, como se sua vida dependesse da chegada ao destino, e torcia as suas rugas cada vez que percebia a bandeira de lotação acesa. Pepo via, acendia mais um cigarro e continuava a espreitar. Naquele instante não se erguia sobre qualquer mureta - era a sua própria árvore, de onde podia observar o mundo no calor das chuvas. Ninguém o notava, nada o incomodava e até o cheque desceu-lhe os bolsos rumo ao bueiro sem nenhum gesto de apego.

Uma gota grossa cutucou-lhe o ombro, e Pepo olhou para o céu distinguindo um feixe luminoso pendendo de uma nuvem cinza. Cruzou um longo olhar com o feixe – ele e sua árvore. Sua boina pingava um colírio azedo em seus olhos, mas nada parecia o incomodar. Sentia na espinha um frio jamais experimentado em sua infância triste e recolhida, e soluçou toda aquela água jogada do céu com sua lágrima amarga.

II

Naquele mesmo instante de reflexão e decisão, onde o tempo dos homens contava-se em longas horas marcadas em relógios esportivos, Deus abriu uma janela por entre nuvens para espiar. Do alto de seu castelo de luz, avistou um homenzinho de seus vinte e três anos no topo de uma árvore. Mirando seus olhos, viu a beleza de toda uma vida sonhada e não vivida, e encheu-se de compaixão. Por um segundo aquele sentimento demasiado humano ofuscou-lhe a onipotência e as horas humanas se perderam. Já era tarde demais e a cidade submergiu em água. Só restava Pepo. Pepo e sua árvore.
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Mateus Souza

2 comentários:

Vitor Souza disse...

Isso poderia dar um romance, Mateus: Pepo, o vagabundo que seduziu Deus e redimiu a espécie humana.

Anônimo disse...

Pepo era o novo Messias??? Gostei muito do "colírio azedo", achei que explicitou mto bem. Tem cara de livro mesmo, dá um quê de pedido de continuação, pelo menos, em mim, deu.