segunda-feira, 12 de março de 2007

Carlos Passos

Quando saltei do elevador encontrei o Carlos Passos advogando, mas de bermuda e camiseta. Com a fabulosa barriga e o jeitão carioca, seus olhos brilharam sobre minha tralha de pesca.
- Aí, ruço, a gente precisa combinar uma pescaria junto.
- E emergiram-se as histórias, as saudades das pescarias no Rio, divididas entre grumari, guaratiba, sernambitiba. Do tempo em que a praia de Ramos ainda não era uma lagoa de merda; e tantas lembranças que seus cinqüenta e poucos anos guardavam como coisas boas da vida. Minha inveja das pescarias de Carlos Passos foi grande. Antes de pegar no sono merecido de um domingo cansativo no mar, fiquei imaginando o velho arremessando daquelas pedras gigantescas de Grumari, onde os peixes vivem felizes e fartos de um dos mais belos lugares da terra. Dormi vendo o azul do céu e do mar do Rio confundindo minha visão.
O dia seguinte era meu: a segunda-feira gosta de mim porque gosto dela. Saindo do condomínio, lá estava Carlos Passos de queixo levantado, barbeado, terno preto, pasta 007, na parada de ônibus.
- Quer uma carona? – Pergunto.
Uns dez quilômetros depois ele entrava no fórum com uma pescaria combinada para a primeira maré de domingo, quando a cheia ultrapassaria sete metros lá pelas quatro e meia da manhã. Fui ao centro da cidade: extrato no banco, um coco na praça João Lisboa, dois expressos numa lanchonete sebosa, da rua do Sol e, meio-dia, hora de ir pra casa. Quando vou virando o retorno pra pegar a ponte lá está o Carlos Passos, mas o trânsito violento do local não me deu chance de parar. O tédio do engarrafamento me fez rapidamente esquecer que o Carlos Passos cozinhava no sol do meio-dia, na panela de pressão: seu terno preto.
Na terça de manhã estou de saída na portaria do prédio. Edimilson, o zelador:
- Carlos Passos morreu.
- O quê?
- Carlos Passos, o senhor não conhecia? Aquele advogado...
Ora, se eu conhecia o Carlos Passos! Caminhei com aquele trejeito zumbi de filme hollywoodiano. O dia anterior veio como um filme de baixo contraste; nele o Carlos Passos era o personagem principal. Eram tomadas perfeitas de minha realidade visual histórica, mas meu ínfimo lado metafísico me dava de castigo uma figura sempre ao lado de Carlos Passos. Era uma figura hialina, sutil, de olhar sarcástico, dirigido, não ao Carlos Passos, mas a mim. Um olhar de quem diz: “olha eu aqui”, semelhante ao onipresente olhar divino; e eu sentia um calafrio, uma consciência pesada por não ter parado e dado uma carona para o Carlos Passos que cozinhava dentro do seu terno preto no calor do meio-dia.
O resto da semana foi comum como um bocejo discreto. A morte já não estava em canto algum. De minha janela eu via, no prédio ao lado, o apartamento vazio de onde o Carlos Passos me acenou pela última vez, no reveillon, pouco antes de sua morte.
No domingo, às quatro e meia da manhã eu estava sozinho em meu catamarã, no meio da Baía de São Marcos. Joguei na água uma dúzia de cravos e comecei a pescar em silêncio, em homenagem ao meu vizinho carioca Carlos Passos.


Geraldo Iensen, Do livro O Legado de Torres, de 1997

5 comentários:

CÁSSIO UCHOA disse...

Esse é um dos meus!!!

Daqueles que acha possível se poetar na prosa e assim quebrar
o mito da pouca expressividade da prosa em detrimento da narrativa.

Quem falar que o prosista é escrava da narrativa vai tomar um processo. (risos)

(só um toque, Mateus, tenta colocar mais teus textos e menos de livros, acho que vai ficar mais interessante e o blog é pra isso mesmo, um espaço pra nossa produção)

Vini Manfio disse...

gostei do texto
escrito de uma maneira diferente
achei legal

Vitor Souza disse...

Gerald, gostei muito, muito mesmo!

Gisele Amaral disse...

Encantador.

cicclops disse...

Faço das palavras do Vitor minhas tb...