sábado, 31 de março de 2007

O enterro do Andy

Você nasce, diz que ama, dói e morre. Há quem me diga pessimista, há quem brade ‘realista’!, Mas eu? Eu cansei de me dizer, eu me arrasto pela vida, sorvendo o tédio-de-cada-dia pelas plantas dos pés. Já me disseram que o maior minuto de sua vida é o que antecede a morte. É aquele retrospecto: infância feliz jogando bombinhas na casa de vizinhos, brincando de médico com a irmãzinha do amigo incestuoso, correndo com mais alguns menininhos atrás de uma bola suja. Aí vêm a adolescência, primeiras competições, rebeldias megalomaníacas como fumar às escondidas na escada de incêndio, shows de rock, e a paixãozinha boba. Espinhas na cara, punheta e revistas eróticas. Juventude madura, politização, passeatas, namoros sérios, orgias, bebedeiras, drogas, um pouco de trabalho, um tanto de faculdade, e pronto, vida adulta. Casa, carro, filhos, horários, happy-hour, amante, cachorro, viagens de férias, velhice, visita de filhos, morte.

Nesse grande e infinito bolo, a calda é despejada em generosas camadas gosmentas de uma moralidade guilhotinesca. Primeiro arrancam-lhe o pau, símbolo da corruptela de nosso monturo de carne de terceira pecadora, em seguida um manual de instrução, que, longe do calor de suas concepções inocentemente lidas, programa os seus bagos para arquear a sua alma em uma vozinha castrada. Nome disso? Humildade. A descrição do inferno é hedionda e enfadonha. Só não descrevem o homem. Se a empreitada fosse finalmente bem feita, ao receber os internos, as hóstias infernais sentiriam a ameaça de seres não filhos do pecado, filhos de andy warhol com veias heróicas pulsando em riste. Uma anarquia desconstrutivista dos parâmetros curriculares da instituição infernal dantesca. Mas dante pode estar errado, como sempre estamos.

Esse minuto funesto me persegue a cada segundo. A anormalidade de minha vida consistiu no meu incômodo cotidiano de experimentar o caminho natural das coisas. O exército ruma à Normandia, e você assiste de camarote. Não dá um tiro. Fica em sua poltrona comendo biscoitos de gordura hidrogenada e bebendo coca-cola. Mas o problema não é espectar, é saber que é expectador. É ver a teia a ser tecida pela aranha cabeluda e sorridente, que de quando em quando, libera um veneno de alívio, enquanto você abre mais uma latinha e rabisca um panfleto anarco-proletário-salvacionista.

A vida de um sujeito pode chegar a um tal ponto que a idéia de morte, longe de ser alívio, é tédio. Sua libido escorrega montanha abaixo, seu corpo mal pede comida, e quando se arrasta, é até as microondas da televisão de cozinha, onde os filmes hollywoodianos são mais baratos e comerciais, mais tragáveis. Seus telefones param de tocar, seu carro enferruja e seus pais vão à Europa e te mandam um postal de ano em ano com rabiscos ininteligíveis de quem mal escolheu a foto e pediu ao vendedor que riscasse quaisquer recomendações vazias.

Da janela penso que essa é a vanguarda da geração que bate à porta. Nem o prozac salva. Somos um câncer com um ego expandido, que a tudo avalia e encolhe, na incompatibilidade de te trazer algum prazer. A dor sempre esteve aí, mas nunca foi tão inteligente. Hoje ela conta com bilhões de neurônios que mal são apagados com álcool, sexo ou drogas. É uma parte da fisiologia, um novo apêndice que cresce metros e metros por entre a massa cinzenta, até absorver todo organismo. Olá, seja bem vindo, essa é a minha gang, meus comparsas, meus filhinhos do caos, meus pós-apocalípticos. O novo mundo já foi descoberto, o estado já é laico, a Alemanha já foi vencida e a guerra fria acabou. O que sobrou pra nós? A Paris Hilton.

- soldado John, como foi libertar um país das mãos de um ditador sanguinário?
- sei lá, me deu vontade de dar uns tiros e vim pra cá me divertir. Foi bem legal, consegui até por dois desses cara-queimadas para se comerem aos berros de alaaaaaaaaaaaaaaah!

Na penumbra de letrinhas pretas, borro a paisagem de uma geração que nem se reconhece. Geração? Eu sou um. Você é outro. Os universos entre nós nunca estiveram tão distantes. A cova nunca foi tão profunda, e o caixão já apodreceu. Todos de olhos vidrados e esbugalhados na tela brilhante! Avante! Ainda temos que descobrir o mistério que levou a Britney Spears a se separar do Justin! Como viveremos sem isso?

Uma carreira, duas carreiras e um vislumbre de lucidez, uma vontade de me juntar aos vietnamitas e enfiar balas em cabeções americanos com cara de budweiser. Vontade de uma causa, de um livro vermelho, de uma cartilha de guerrilha, de um movimento pacifista neo-hippie, vontades voláteis. Mais uma carreira. Shhhhhhhhhhhh. Vontades voltam e somem com as trilhas mágicas do pó da cinderela. O golden gate se abre e se fecha em intervalos suficientes para que você chegue a alguns milímetros de atravessá-lo, mas nunca consegue, nunca. A luz só impressiona. É intangível em sua imundície.

Meus olhos já secaram e andam rijos. Não existe motivo de choro. Não existe a dor melancólica dos poetas, o coração partido e a paixão idealizada... Existe apenas essa dor seca que contorce os seus intestinos e revira seus bagos, e só. Ela é seca, ela não chora. Ela pede leite condensado e um pouco mais de musicas do último segundo e de imagens re-imagens pré-imagens. Nada se inventa. Nem se cria. Transforma-se? Mentira. “Acredite se quiser”.

A mudança é um sonho sórdido, pois se ampara na idéia de que alguma coisa melhora. Impossível. Se uma coisa melhora, ela passa ontologicamente a adquirir o status de pior. E você quer mais e mais. E mais de nada. Porque nada vai saciar a sede. Inconformado, rio do pote seco. Uma risada maligna e dolorosa, de quem não aceitou a vida, mas não quer mais lutar por ela – e nem quer o trabalho de desistir. Só o vazio, um pianinho ao fundo e um copo de rum, já que o whisky anda caro demais.

Aos beliscões tentam me reanimar ‘vamos lá, vai ser bom’. Bom? Nunca é bom. É ruim porque é vazio, maquiado, e acaba. E o sabor do batom se desfaz à primeira olhada no espelho. Não sei se preciso disso. Não sei se não preciso. É um momento vivo onde existe a constatação de que estamos completamente mortos e ressequidos, trocando farpas humildes em mesas de bares mexicanos.

Vamos falar de amor. Pernas abertas em luxúria, cacetes armados, sussuros indecentes e gozos. E ai? O que existe depois disso? Passagem pra eternidade? Não. Pro inferno. O apêndice te cutuca pra lembrar que acabou e esvaziou-se. Secou, morreu. Até a próxima. Ereção. Ejaculação. E a próxima e a próxima. Um dia seu pau não sobe. Tome remédios e continue assim, vamos longe!

A fé é uma experiência fantástica. Ela irrompe das dialéticas de beneces e perdão e fulmina o peito com a paz. A paz de ver o tumor e sorrir. Já vi um velho pastor à beira da cama sorrindo ‘vou encontrar meu criador’. Mesmo que ele não o tenha encontrado, ele viveu. Alienação? Não. Vida. Não vida é respirar o ar tuberculoso da cidade que te entope as entranhas de um lodo preto que não se lava.

No turbilhão de blábláblás que já fui obrigado em fusões com grandes carteiras de cedro e ouvidos encerados com cotonetes johnsons a tolerar, pequenas estrelas ainda me intrigam. Primeiramente vistas em idade infantil, donde muitas cintilam até hoje. Ainda as conto nos dedos, mas seus brilhos poderiam preencher a eternidade do espaço. Eles encontraram, eu não. Não consigo compreender o brilho pela lógica, mas é precisamente a compreensão lógica que me cega da fulminação mística. Mas como conseguir uma fulminação mística? Estar aberto. Como estar aberto? Foda-se. Sou lógico. Morrerei como um Dedalus em súplicas no leito de sua cama fria ainda adolescente espreitado por demônios rabudos e dançantes em rodas pagãs por entre os meus miolos enervados.

Deus salve a Latrina das américas.
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Mateus Souza (revisado)

3 comentários:

Vitor Souza disse...

Mateus, eu fico bobo com o fato de eu, você, e outros companheiros nossos de comuna-virtual, estarmos falando a mesma coisa, em textos diferentes: a desilusão do nosso tempo. Eu te entendo perfeitamente. Muito legal esse texto!

. disse...

Também viajei bonito no teu texto ... é ácido no seu realismo mas otimista na poesia.
é poético, joínha e merece um dedão pra cima.

Luíza disse...

Um dos meus textos preferidos na confusão anonima da internet. Já li ele faz algum tempo, e procurando de novo, encontro ele assim, revisado, e não menos enial.

O saudosismo me faz querer ler o oriinal, ou melhor, o antigo, caso fosse possíel.

Parabéns pela maneira sublime de canalizar o ódio. Se fica tão bom, é por que é um reflexo de como a gente leva a nossa própria vida: sempre incompleto, e sempre questionando isso.

Inspirada, Luíza.