quarta-feira, 4 de abril de 2007

Dany do espírito santo

Miss Dany era o arquétipo de uma geração de mulheres antigas. Nasceu no interior já prematura, começou seus trabalhos domésticos aos três anos de idade, aos cinco vendia calcinhas de nylon em uma feirinha, aos 12 foi comida por um caipira desdentado em uma moita de riacho e aos 15 se casou. Mudou-se para a capital com seu macho e, com muito esforço criou seus 5 filhos. Todos em escadinha.

Dany já contava seus sessenta e quatro anos, vividos rotineiramente sem grandes surpresas e com muitos trabalhos. Costurava roupas, lavava roupas, vendia roupas e, eventualmente, produzia roupas para sua famigerada família. Como todos seguiam o padrão de trabalho prematuro, a família conseguiu comprar um pequeno apartamento de dois cômodos em um bairro de classe média. A esta altura, o seu velho marido gasto já havia abotoado o palitó, depois de algumas doses a mais de caninha barata e cigarros vagabundos. Cozinhava para o batalhão e mantinha a casa em ordem, não porque era uma batalhadora, mas por ser este o motor de sua existência.

A Su era sua filha mais velha. E mais rentável. Mantinha um corpo exuberante e a melhor coleção de roupas da casa. Prestando contas à velha mãe, apresentava-se como uma competente recepcionista de motel que conquistava por agrado gorjetas que inflacionavam seu modesto salário. Era o orgulho da família, ainda que seu verdadeiro movimento era o de abrir portas em seu corpo um pouco mais suculentas que as da recepção.

Dany, como boa mãe que era, arrumava a fantástica coleção de roupas de sua filha, o que incluía uma memorável coleção de calcinhas bastante diminutas, diga-se. Contava ainda com inúmeros casacos de pele e objetos um tanto quanto suspeitos para a sua velha mãe, mas, dada a forma plástica e fluida destes, não obtinham classificação possível para a velha.

Numa dessas diárias arrumações, a velha senhora deparou-se com um modelito que cabia-lhe como uma luva pro seu corpo. De certo que algumas carnes cinturescas escapavam por entre as bordas da roupinha, mas, mesmo assim, a humilde senhora viu-se como uma diva pela primeira vez em sua vida. Já vencida pela tentação de usufruir pelos espelhos da casa vestida de Su, a velhota resolveu permitir-se mais uma liberdade. Iria fazer um pequeno passeio pela vizinhança com seu novo look. Desse modo, cobriu-se de alfazema, pôs o modelinho justo, salpicou um pouco de pó e batom em suas feições enrugadas e desceu os 5 lances de escada que a separavam da rua.

Naquele dia quente o asfalto exalava um terrível odor vaporizado. Cabeças de transeuntes eram fritas como ovos em frigideiras por desabrigo do sol quente. Dany andou impassível até a banca de revistas mais próxima. Seu estado de glória impedia que seus poros exalassem qualquer gota de suor amargo. Dois arcanjos, curiosos com a cena, descerem dos altos céus para bisbilhotar a velha alma jovem em seu vestido decotado. Com seus dedinhos angelicais, abriram uma fenda por entre uma nuvem espessa e fitaram a cena com seus olhos esverdeados de anjos.

Pediu ao senhor da barraca um maço de cigarros. Por entre as formas adiposas que recheavam o vestidinho, o velho arqueado estremeceu com o doce aroma de alfazema que fluía da alma ressucitada da velha senhora. Moveu-se mudo por entre as prateleiras do recinto, agarrando um pacode de cigarros derby luxo. Ofereceu-lhes à Dany emudecido, e, pela primeira vez na entrega de um produto, esqueceu-se de cobrar. Aproveitando seus novos encantos recém descobertos, Dany saiu sem pagar a carteira de cigarros. Sentou-se ao ponto de ônibus, sem muitos planos em mente. Acendeu um cigarro, cruzou suas pernas colecionadoras de varizes e fumou com todo o glamour que sua pose lhe permitia. Aqueles minutos sentados no sujo banco de concreto tranportaram-na para uma profusão de belezas sensíveis que jamais havia experimentado. Os transeuntes com cabeças de ovos fritos viravam-se para contemplar a velha; uma carreira de formigas em procissão para um pedaço de doce caído de um bolso de um garoto pré-escolar mudou seu rumo em respeito à figura imponente que bloqueou o antigo caminho; carros freavam à vista da velhota de luz, buzinado respeitosamente em flertes do século vinte e um. Os olhares dos arcanjos atiçaram a luxúria de seus corpos de luz.

Dany debruçou-se sobre o banco como que por sobre um divã. A enxurrada que inundou seus sentidos começou a acelerar o ritmo do seu coração gasto. Sentiu o frio do fim de existência a passear por entre sua espinha. Acendeu mais um cigarro, deu uma longa tragada, fechou os olhos e libertou sua alma, que foi prontamente recolhida pelos arcanjos curiosos.

Um velho jornalista foi promovido por suas sensacionais fotos sobre o último dia da dama da parada das lotações.
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Mateus Souza

7 comentários:

Vitor Souza disse...

Que imaginação, ein? Mateus, muito bom! Sem palavras, cara.

. disse...

haha, muito bom mesmo.
"Com seus dedinhos angelicais, abriram uma fenda por entre uma nuvem espessa" .. adorei essa imagem.
ótima prosa

Anônimo disse...

esse ta bom mesmo!

oldharbourlass disse...

Grande dona Dany... um fim de glamour para uma diva.
A descrição dos fatos tá boa e engraçada!!
Parabéns!! :D

Escrivinhações do Feuser disse...

De putinha à putona. Belas imagens criei.
Gostei pra garai

Unknown disse...

Sensacional, Mateus!!!!
"liberdade ainda que tardia"

HH disse...

bah.... ainda me liberto como ela!