terça-feira, 23 de outubro de 2007

Camusianamente

O assunto sobre o qual irei escrever não é novo. Ele encontra seus ecos em cada pedaço do cotidiano, e escreve-se do vulgar ao erudito. Foi já largamente tratado por filósofos de toda época. Reúne, em torno, dezenas de pesquisas, artigos e publicações formais. Portanto, adianto ao leitor que, se consumido pelo desejo da novidade ao engolir palavras, desista.

Poderia listar referências inúmeras, e compor um escrito acadêmico com toda a sua estética clara, formatação pré-concebida e validade atestada. Não o farei. As razões são simples, e se, por sua vez, reclamam outras razões, não as darei. Como já disse, quando o assunto for apresentado e tornado visto, pode-se, por uma opção legítima (senão mais acertada), procurar em manuais acadêmicos e bibliotecas – já foi dito acima tratar-se de coisa já dita. Aos motivos: trabalhos acadêmicos normalmente se perdem em burocracias. Só quem escreve sabe o ônus em perda de idéias que se têm ao tentar pôr-las no papel. E das acadêmicas mais ainda. Estas últimas preocupam-se tanto em validar formas, que normalmente concorrem para o esvaziamento de conteúdo de quem as escreve. A outra razão, não menos importante, é que o relógio já aponta para o amanhecer, e, como este segundo parágrafo já se amontoa sem sequer ter-se falado sobre o que vai se falar encurtemo-lo. Um breve esclarecimento biográfico de nula importância: o horário não consta na ordem dos problemas de quem está a redigir este, mas, dada a sua saúde frágil no momento, seu humor instável e seus olhos que ardem, a cama parece um convite mais aprazível do que a inutilidade do que está sendo escrito.

Sem mais, vamos ao ponto. A formulação é simples e comovente: vivemos instruídos para um avanço nos meios que propiciarão um fim. Ao fim, ou em um dado momento, a flexão sobre os fins alcançados parece não corresponder aos esforços requeridos como os meios e então duas opções são possíveis: a primeira, se a idade já avançou, é resignar-se e, talvez, legar o problema a quem não o tenha sequer notado, apesar de sua vasta proclamação. A segunda, e mais difícil, pode ser feita se a idade ainda permitir rupturas no fluxo dos meios e uma mudança estrutural para uma busca de novos fins. A quem puder optar pela segunda, arca-se com o ônus de saber ainda a que novos fins devem-se buscar, e, decidindo-os, quais serão os meios para conquistá-los.

Parece difícil, e faz-se oportuna uma referência pessoal como metáfora explicativa. Para quem cursa ou cursou uma academia, a pressão exercida pela aurora de um curso completado é bastante notável. Finalmente, o horizonte do trabalho torna-se visível, e, se para alguns é desespero, para outros é possibilidade, seja de realização, conquistas financeiras ou ganhos diversos. Enfim, não é este o ponto. Mas podemos pensar que só chegamos aqui por uma prova não menos opressora – todos conhecem bem o terrorismo que cerca o vestibular. Uma vez no vestibular, podemos pensar no segundo grau da educação básica, onde o adestramento obrigava os professores a substituírem nove de 10 palavras de seus vocabulários já marcados pela palavra ‘vestibular’. Regressemos mais, e chegaremos ao lugar do ingresso na escola: evento memorável de nossas famílias, onde um pai ordinariamente proclama: “é um novo mundo que se abre para o meu filho”. Um último passo e estamos no berço. A qualidade mais valorizada, mesmo quando choramos porque somos bebês e estamos com fome, e ainda não aprendemos as artimanhas da linguagem, é a inteligência. – veja só como meu filho é esperto! Ele já consegue apontar para o móbile e dizer paaaa! Obviamente quer nomear o passarinho! (não notou o pai idiota que, de tanto repetir aos ouvidos do recém-nascido, a palavra era papai).

Um giro e estamos no lugar do pai. Homem honesto, trabalhador, com filhos criados, bem empregado e com uma bela casa de campo. Uma amante desejável e uma bebida sempre a mão. Se lhe perguntar – por que bebes? A resposta será um simples – para relaxar. E justamente sobre o relaxar que se coaduna todo o problema. Relaxar de que? Brindar não seria uma palavra mais honesta, já que ao alcançar um estágio da vida, contam-se tantas realizações? O absurdo é que não seria. Relaxar.


Relaxar porque nunca foi-lhe perguntado se queria estudar (afinal, não tinha idade para decidir, e não teria futuro sem estudo). No vestibular já havia incorporado a grandeza da expectativa, e, sem perguntar-se, escolheu o que lhe pareceu mais promissor, seja em que ganhos isso possa ser calculado. Na faculdade o exercício da obrigação tirou-lhe o tempo de pensar. Fazia porque tinha que ser feito. Um pouco de prazer, novas experiências sexuais e lisérgicas e a coisa ia andando. Trabalhou feliz na primeira oportunidade que apareceu, afinal, com o seu namoro de vento em popa, a chance de juntar os trapos com a linda figura não podia ser perdida. Aí vem filhos, bens, comidas, bebidas, brigas, retratações, amantes, fins de tarde com amigos, rugas, flacidez, problemas com ereção, doenças, e morte, acabou-se. Alguma coisa foi escolhida? Foi-se livre por um segundo para decidir? Em que momento a possibilidade de dizer – agora paro. Vou deixar para trás tudo isso, vou fazer outra coisa! Foi validada?

Aqui, neste ponto existirão milhares de contra-exemplos e contra-provas e auto proclamadores de suas vidas extraordinariamente libertas e não alienadas. Não me interessam tais opiniões. O que me parece é que com poucas mudanças na linguagem, as vidas podem ser inexoravelmente encaixadas neste molde tosco de quebra-cabeças. Posso estar completamente errado, mas tampouco isso me preocupa.

Agora, às quatro da manhã, eu pergunto: que vais fazer de tua vida? Eu não sei quanto a você, mas vou tentar dormir nas duas horas que me restam (já que perdi meia escrevendo este inútil texto) porque terei aula às sete da manhã e não posso faltar sob risco de perder na matéria por faltas. E, como bem sei, não posso desistir a esta altura. Por que não? Ora meu caro, falto tão pouco para me graduar!


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Mateus Souza

6 comentários:

Elena disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

muy bueno, mateus.

é isso. ou simplesmente aceitamos que ter uma vida inexoravelmente encaixada num molde tosco de quebra-cabeças pode também ser uma opção. ser livre também é relativo..

bjos!

. disse...

É, meu velho, alcançar a iluminação búdica exige muita disciplina e a vida é muito bela para querer se matar. Passamos a vida sendo ensinados a juntar dinheiro, mas grande parte desses professores da vida não são felizes.
Os desiludidos perguntam: o quê nos resta?
E pra eles eu respondo ambiguamente: todo o resto nos resta.


Adorei este trecho:
(...)Por que bebes? A resposta será um simples – para relaxar. E justamente sobre o relaxar que se coaduna todo o problema. Relaxar de que? Brindar não seria uma palavra mais honesta (?) (...)

. disse...

ah .. curti bastante o texto, especialmente a narrativa. o jeito que divagas é gostoso pra chuchu. h
hehe

Unknown disse...

Mateus, eu não vou comentar se achei bom ou ruim teu texto, mas só pq acho que isso não faz bem a ninguém. Acho que da idéia de "beber para relaxar", está aí o ponto central de tudo. Há uma forma ótima de pensamento, que é veiculada pela maioria, o problema está aí, esta forma ótima é um verdadeiro desastre. É dessa forma ótima que sinto: "roubaram-me o mundo, preciso recuperá-lo". Gostaria que mais pessoas também despertassem para isso, e para mim é justamente essa idéia que teu texto fala.

[]´s!

Vitor Souza disse...

Hehehehe, Mateus, esse parece ser mesmo um texto escrito por quem estava sofrendo de insônia.

Mas concordo contigo e me arrepio até na alma por constatar que tenho vivido quase somente para pagar contas.

E o pior é que todo o "resto" que conheço não me parece melhor do que o que escolhi pra viver.

Enfim, aceito sugestões...