sábado, 26 de janeiro de 2008

HISTÓRIA DE GOLFINHOS

(Um conto juvenil)

A menininha esfregou os olhos, apoiou as mãozinhas gordas no pedaço de chão forrado por esteira e se levantou sem fazer barulho. Andou pelo interior da cabana de taipa, passando por cima dos irmãos, pelo fogão à lenha, por baixo da rede do pai e abriu o trinco enferrujado da porta rústica bem devagar. Apesar da sua pouca coordenação e andar desajeitado, era bem pequena, conseguia realizar esse plano de fuga todas as manhãs, antes do sol nascer, com extrema destreza.

Sentiu a lufada do vento gelado com cheiro de peixe em seu pequenino rosto. Seus cabelos amarelos, compridos e desgrenhados chicotearam o ar desordenadamente e os pezinhos afundaram na areia enquanto ela se aproximava da praia. Escalou com pouca dificuldade o rochedo frio, encaixou o pequeno corpo dentro de uma das cavidades da grande pedra e ficou observando...

A lua branca enchia de luz o mar calmo, havia poucas estrelas e a menina riu... Riu deles, dos bichinhos, riu com eles, tão bonitos, os golfinhos. Eles também pareciam sorrir para a menina, saltando, mostrando as barrigas, nadando em círculos.

Todos os dias desde que sua mãe morreu, passara a fugir para a praia. Sonhou com a mãe numa noite e se levantou. Naquela madrugada não chorou, mas foi para a praia. No primeiro dia ficou apenas olhando o mar, nada viu. No segundo apareceu um bichinho. No terceiro foram dois e nos dias subseqüentes, muitos: Seus corpos lisos, brilhantes, fofinhos. Elevavam os orifícios de respiração para fora da água e emitiam uns sons agudos. A menina, com sua voz fina, “respondia”. Quem presenciasse a cena diria que eles estavam realmente se comunicando. E esse “diálogo” durava até um momento antes dos primeiros raios de sol surgirem. Então, a menininha realizava o trajeto de volta, entrava na cabana e se enfiava em seu cantinho de dormir. Ao que se saiba, ela nunca foi descoberta. Aquele era o seu grande segredo.

A pouca idade da criança, porém, não lhe agraciava com a “qualidade” da inocência: Ela sabia o peso de ser uma órfã de mãe e que sua família vivia em condições muito precárias.

Tempos depois, quando a colônia de pescadores onde vivia adquiriu um velho aparelho de TV, e ela pôde ver quase que diariamente imagens de pessoas bem vestidas e saudáveis habitando mansões luxuosas e pomposas na alienação das telenovelas, a certeza de ser uma excluída tornou-se ainda mais evidente.

Contudo, a despeito das mudanças físicas e psicológicas que a idade lhe trouxe, apenas uma coisa não se modificava: sua sólida amizade com os golfinhos. Ou melhor, algo mudou sim: alguns anos depois daqueles primeiros encontros à distância, a moça já era capaz de nadar com eles, tocá-los de leve, sentir o cheiro deles. Era uma interação maior do que a que ela poderia ter com qualquer ser humano.

Com o tempo, os limites impostos por sua desfavorável condição social foram sendo superados. Ela venceu a ignorância própria de quem não pôde ser alfabetizada ainda criança e começou a ganhar a vida na cidade.

Durante muitos anos, ficou sem o contato com os golfinhos, mas a mulher jamais perdeu o hábito de acordar cedo e ficar pensando neles, com a estranha certeza que, se fosse à praia da pequena ilha onde nasceu, encontrá-los-ia “sorrindo-lhe”, do mesmo jeito que antes.

Seus esforços levaram-na à universidade, tornou-se bióloga e mais tarde uma dedicada pesquisadora... Dos golfinhos!

Simão, o golfinho mitológico; a coloração da pele dos bichinhos que variava de acordo com a luminosidade da água do mar; as variedades de espécimes; a comunicação entre eles por modulação de freqüência; os relatos sobre a menina neozelandesa Jill Baker, que “cavalgava” oceano adentro no dorso do golfinho Opo; o golfinho Elie, que também brincava com crianças na costa do condado escocês de Fife; os golfinhos que apareciam mortos nas costas marítimas sem qualquer razão física aparente; e, principalmente, seu trabalho com crianças traumatizadas e altistas em que utilizava a presença de um golfinho no processo de terapia; - eram os temas e atividades que ocupavam a maior parte do tempo e energia da pesquisadora que amava demais aqueles animais.

Quando atingiu a idade da razão, nossa doutora-heroína tornou-se uma ativista, jogando-se ao mar junto com outros companheiros em protesto à captura desses mamíferos para servirem de atração turística em aquários particulares de empresários milionários. Foi filmada por redes de televisão e taxada de radical-extremista por jornalistas a serviço do poder econômico.

Mas quando em protesto na água gelada do oceano sentiu o forte impacto na cabeça desferido por algum desajustado da Guarda Costeira, ainda teve consciência para perceber seu corpo afundando, mole e inerte, e muito sangue à sua volta, num contraste com os raios do sol que na água do mar penetravam. Agradeceu pela vida que teve, pela intensa vida que teve, e se entregou ao seu destino, o de morrer pelos golfinhos. A última coisa que viu antes de perder totalmente os sentidos, foi uma mancha escura e esguia, com bico e barbatana aproximando-se à grande velocidade do seu corpo ferido.

Mas não pensem que esta história terminou aqui!

Nossa heroína ainda viveu por muitos anos, sempre fiel à sua nobre causa. Quando chegou realmente ao final da vida, com 95 anos de idade, pediu aos netos que a levassem pela última vez à praia da pequena ilha onde nasceu. Queria agradecer aos bichinhos por eles terem lhe dado um sentido para viver. Ela agradeceu. Eles vieram ao seu encontro. Eles agradeceram de volta.


Vitor Souza

Um comentário:

Fabi disse...

Historia infantil beat é algo surpreendente. ensinandoàs crianças uma boa literatura, leva-as a um bom futuro literário. sem pensarem em ler literatura "ruim"